Sinceramente não sei como responder objetivamente a sua pergunta. Essas manifestações não fazem parte da minha espiritualidade e, não as tendo vivido, não sei bem como explicar e reconheço o meu preconceito. De qualquer forma, aproveito a sua pergunta para fazer algumas reflexões que podem servir como ponto de partida para que cada um busque sua própria resposta.

 

O dom das línguas

O falar em línguas, elemento comum nas igrejas pentecostais e também no movimento carismático, é algo que chama muito a atenção de todos. O que é isso? O que se diz? Esse fenômeno está em íntima conexão com o Espírito Santo, enviado sobre os apóstolos, como contado em Atos dos Apóstolos 2. Esse capítulo do livro escrito por Lucas conta o Pentecostes e descreve como a palavra anunciada pelos apóstolos era entendida por todos, cada um no seu próprio idioma. Portanto, acredito ser essencial entender bem essa passagem para então tentar aplicar nas práticas existentes hoje do falar em línguas, que era também algo existente nas primeiras comunidades: Atos dos Apóstolos 10,46; 11,15; 19,6; 1Coríntios 14. Até mesmo no Antigo Testamento esse fenômeno aparece, especialmente ligado à profecia: Números 11,25-29; 1Samuel 10,5-6.10-13; 19,20-24; 1Reis 22,10.

 

O Pentecostes

Não é uma festa cristã, pois já existia no tempo de Cristo, celebrada pela comunidade judaica. Os apóstolos, portanto estavam celebrando uma festa da tradição judaica, que Cristo também celebrou, a cada ano. É a festa das semanas (shavuot, em hebraico); são 7 semanas, contadas a partir da Páscoa e o 50o. dia é o dia da festa. É essa a razão do nome grego que dá o título à festa (Pentecostes = cinquentésimo dia).

No início, na tradição hebraica, era a celebração da colheita, a celebração da vida, do bem estar, da riqueza, dom de Deus, simbolizada principalmente através da colheita do trigo. De fato, o período da festa coincide, no hemisfério norte, com a colheita da lavoura.

A partire do III século antes de Cristo, graças ao jogo de palavra em hebraico (shavuot e shevuot) a festa das semanas se torna a festa do juramento, isto é, a festa da Aliança estabelecida entre Deus e o Povo Hebreu através de Moisés sobre o Monte Sinai, com o dom da Torah, da Lei.

Em um dos escritos descobertos em Qumran, Livro dos Jubileus, conta-se que a festa de Pentecotes não é vista mais como simples festa da Aliança, mas da Nova Aliança. É a mesma Nova Aliança anunciada pelos profetas, principalmente Jeremias e Ezequiel. Vamos ver de perto esse anúncio:

Jeremias 31,31-34:

Eis que chegarão dias - oráculo de Javé - em que eu farei uma aliança nova com Israel e Judá: Não será como a aliança que fiz com seus antepassados, quando os peguei pela mão para tirá-los da terra do Egito; aliança que eles quebraram, embora fosse eu o Senhor deles - oráculo de Javé. A aliança que eu farei com Israel depois desses dias é a seguinte - oráculo de Javé: Colocarei minha lei em seu peito e a escreverei em seu coração; eu serei o Deus deles, e eles serão o meu povo. Ninguém mais precisará ensinar seu próximo ou seu irmão, dizendo: «Procure conhecer a Javé». Porque todos, grandes e pequenos, me conhecerão - oráculo de Javé. Pois eu perdôo suas culpas e esqueço seus erros.

Ezequiel 36,26-27:

Darei para vocês um coração novo, e colocarei um espírito novo dentro de vocês. Tirarei de vocês o coração de pedra, e lhes darei um coração de carne. Colocarei dentro de vocês o meu espírito, para fazer com que vivam de acordo com os meus estatutos e observem e coloquem em prática as minhas normas.

Diante da queda de Jerusalém, conquistada por Babilônia, esses dois profetas pensam em pessoas novas, às quais não será preciso que um sacerdote diga o que fazer, pois serão movidas por um coração de carne, dentro do qual estará presente o espírito de Deus. Essa era a nova aliança celebrada e vivida pelos judeus no dia de Pentecostes. Nesse dia, os fieis renovam seu compromisso de fidelidade a Deus e Ele doa novamente a Lei ao seu povo.

 

Simbolismo

Esse contexto judaico é muito importante para evitar leituras fundamentalistas. Há inclusive um texto muito parecido com a narração de Lucas em Atos. Trata-se de uma descrição da festa de Pentecostes feita por Filone, um filósofo judeu, do tempo de Cristo, que como Lucas fala de elementos impressionantes, principalmente vento, línguas de fogo e o aspecto dos diferentes dialetos. Os dois autores não se conheciam. A proximidade entre os dois textos mostra simplesmente que o que diz Atos dos Apóstolos 2 não é algo inédito, inventado por Lucas, mas é a narração de uma experiência que acolhe elementos teológicos já vividos pelo povo judeu com a novidade que é Jesus, que subiu aos céus, que manda o Espírito Santo, que enche os corações dos seus seguidores, uma Nova Aliança que se concretiza.

A história do Pentecoste de Atos é cheia de elementos simbólicos. E isso é evidente graças ao uso de alguns vocábulos:

  • o barulho que se produz é quase como um vento
  • as línguas são como de fogo

Além desses advérbios, é evidente a relação com a teofania contada por Êxodo, quando Moisés recebe a Tábuas da Lei: tempestade, fogo...

 

As línguas

A tradição rabínica diz que quando, no Sinai, Deus dá a Lei ao povo, fala em 70 línguas, pois tantos eram os povos de então. Em Atos, na narração do evento, Lucas faz uma lista comprida de povos que estavam ali reunidos. É provável que se trate dos lugares onde a Igreja já havia sido inaugurada. Essa diferença de línguas e povos nos remete à história de Gênesis 11, ao episódio da Torre de Babel:

Gênesis 11,7: 

Vamos descer e confundir a língua deles, para que um não entenda a língua do outro

É a maldição dada ao homem pecador, que através da palavra, principal instrumento de comunicação, não consegue mais se relacionar

Atos 2,6: 

Quando ouviram o barulho, todos se reuniram e ficaram confusos, pois cada um ouvia, na sua própria língua, os discípulos falarem.

Portanto, Atos diz que terminou a cunfusão de Babel e começa a Jerusalém da comunhão. Os cristãos, mesmo sendo diferentes povos, dizem a mesma coisa, caminham pela mesma estrada, se entendem.

Esse milagre é o que caracteriza o Pentecoste cristão e é muito maior do que não conseguir entender algumas línguas.