Existe um preconceito entre os cristãos que veem a lei (os mandamentos e preceitos) contida no Primeiro Testamento como incompatível com os preceitos do Evangelho e ultrapassada. Este é um preconceito que até mesmo as primeiras comunidades de discípulos de Jesus conheciam bem: "Agora temos Jesus. Nele há a plenitude da revelação divina; para que precisamos mais dos mandamentos e outros preceitos transmitidos pela tradição?".

O evangelista Mateus, um judeu que escreve sobretudo para os fiéis cristãos vindos do judaísmo, nos diz que o próprio Jesus se preocupa em esclarecer este ponto. Jesus é apresentado como o novo Moisés que, na "montanha", dá a lei de novo. Não se está falando de uma Lei diferente, mas do "mais" de significado e justiça dessa mesma Lei que Jesus revela ao ensinar a observá-la.

 

A Lei: uma barreira contra o caos

Há vários termos na Bíblia que lembram a lei; um em particular nos ajuda a entender o que ela é: CHOQ. "Choq" é uma estaca de madeira, exatamente o que é usado para marcar as fronteiras. A fronteira marca um limite, mas é também o que permite que tudo exista em sua diversidade e individualidade. Um exemplo deste conceito nos vem do Livro do Gênesis: Deus cria através de sua Palavra, e com sua Palavra, por um lado cria suas criaturas, cada uma diferente e particular ("de acordo com sua espécie"), por outro, ele estabelece limites para elas. Deus faz o mundo através de separações: Ele separa a luz da escuridão; a água do enxuto; a água superior (chuva) da água inferior (mares e rios). Se todas estas coisas, em si todas boas, não tivessem uma fronteira, um limite, haveria caos, confusão, anti-criação. Cada coisa criada teria anulada sua dignidade individual e a possibilidade de existir. Na história do Dilúvio (Gênesis 7), encontramos este mesmo conceito: através da confusão das águas, que ultrapassam seu limite e invadem a terra, Deus cancela a criação de antes e tudo morre. No mundo humano e terrestre, o direito e suas leis são a expressão do limite que torna possível a convivência.

Vista sob esta luz, a lei é a descoberta da existência de outros diferentes de nós, Deus e nossos irmãos, e nos ensina a nos relacionarmos com eles de acordo com sua peculiaridade. O paradoxo da lei é que ela é uma limitação que nos faz experimentar a liberdade absoluta, porque somente quando descobrimos que outros existem é que finalmente começamos a sair de nós mesmos e a nos libertar.

 

A Lei é a vida do irmão

Um texto que nos ajuda a entender isto é encontrado em Êxodo 22,24-26. É a lei que rege os empréstimos. A Lei que Deus dá a Israel diz:

“Se você emprestar dinheiro a alguém do meu povo, a um pobre que vive ao seu lado, você não se comportará como agiota: vocês não devem cobrar juros.”

Esse gesto em si é uma coisa muito boa, pois um empréstimo ao irmão, sem usura, lhe dá a oportunidade de se erguer e recomeçar a vida. Todavia a Lei não só protege o irmão que se tornou pobre, mas também o homem rico, que faz o empréstimo. De fato, o mesmo texto de Êxodo diz mais ou menos assim: "quando você tiver feito o empréstimo, no aguardo que ele seja devolvido, mas sem juros, você tem direito de ficar com um penhor, enquanto não lhe for devolvido o empréstimo ".

Mas a Lei também diz que se o penhor que foi dado a quem emprestou é o manto de seu irmão, ele deve devolvê-lo ao devedor antes do anoitecer, pois essa é a pele dele; se estiver frio, com que mais ele deve se cobrir? Desta forma, a Lei protege o homem rico, e isto responde a uma necessidade de justiça para com aqueles que se privam de algo para emprestar, mas se o penhor é o que faz seu irmão viver, e sem ele seu irmão sofre, antes que o sol se ponha e o frio comece, o manto deve ser devolvido a ele, desistindo do penhor ligado ao empréstimo porque a vida de irmão é mais importante.

Esse é o "mais" da justiça: a verdadeira lei é a vida do irmão: "Caso contrário, se ele clamar a mim, eu o ouvirei, porque sou compassivo" (Êxodo 22,25).

A Lei, em resumo, garante o meu direito, mas até que a vida do meu irmão esteja garantida. A lei é uma garantia de direito, mas tem uma justiça adicional que reside no amor pelo próprio irmão.

Para obedecer a esta Lei é preciso ter sido libertado de si mesmo e do próprio egoísmo, ser livre para amar, pois não há justiça na Lei se ela não estiver a serviço do amor.