Lendo a Bíblia, realmente impressiona como os personagens tinham uma relação efetiva com Deus: falavam com Ele, tinham visões, recebiam ordem dEle e até O encontravam (Moisés O encontra na sarça ardente e fala com ele como se fosse um amigo, Abraão recebe a Sua visita em Mambre, Jacó luta com Ele, os profetas - como Samuel - são chamados diretamente por Ele...). Sem falar, obviamente, dos apóstolos que puderam viver pessoalmente com Deus. Além de tudo isso poderíamos acrescentar a questão dos milagres, que parecem tão comuns na presença de Cristo. Nós, invés, parece que vivemos longe de Deus. Temos fé, é claro, mas não O encontramos no nosso dia-a-dia, ao menos nos modos como a Bíblia descreve. E, nas nossas experiências, nada de milagres espetaculares. Nos vem espontânea a pergunta: será que não somos suficientemente fiéis? Será que Deus não está mais presente como estava na época da Bíblia?

São perguntas, humanamente falando, bem colocadas. Elas podem nos ajudar a crescer na fé, se buscamos uma resposta. Não tenho uma resposta pronta, mas dou sou algumas pistas que nos podem servir de parâmetros para a reflexão pessoal.

Nós somos feitos para a relação. Não é fácil acreditar em um Deus transcendental, que fica longe. Queremos que ele caminhe conosco, nos fale. Queremos ver a sua face, as suas ações. Em João 14 temos um emblema desse nosso desejo. Quem encarna essa nossa atitude é o apóstolo Filipe, quando diz a Cristo: "Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta!" (João 14,8). A resposta de Cristo ao seu discípulo é uma resposta que serve para todos nós:

Filipe, há tanto tempo estou convosco e tu não me conheces? Quem me vê, vê o Pai (João14,9).

Essa palavra de Cristo é muito eloquente: em Cristo encontramos a Deus.

Mas isso provavelmente não basta, para o nossa ansiosa vontade de "ver". A esse propósito é muito interessante notar como no Antigo Testamento se fala tanto em "rosto" de Deus ("panim", em hebraico). O rosto de Deus aparece cerca de 100 vezes no Antigo Testamento. O povo judeu queria, como nós, "ver o rosto de Deus". No entanto a religião judaica proíbe todas as imagens, porque Deus não pode ser representado, como faziam os povos vizinhos com a adoração de ídolos; então, com esta proibição das imagens, o Antigo Testamento parece excluir totalmente o "ver" do culto e da devoção. O que significa, então, para o israelita piedoso, buscar a face de Deus, sabendo que não pode haver imagem alguma? Por um lado, se quer dizer que Deus não pode ser reduzido a um objeto, como uma imagem que se toma em mãos, nem mesmo se pode colocar algo no lugar de Deus; por outro lado, afirma-se que Deus tem uma face, um "Tu" que pode entrar em relação, que não está fechado em seu Céu a olhar do alto a humanidade.

No Antigo Testamento, há uma figura que está ligada de forma muito especial ao tema da "face de Deus"; trata-se de Moisés, a quem Deus escolhe para libertar o povo da escravidão do Egito, doa-lhe a Lei da aliança e o conduz à Terra prometida. Bem como, no capítulo 33 do Livro do Êxodo, diz-se que Moisés tinha um relacionamento estreito e confidencial com Deus: "O Senhor falava com Moisés face a face, como um homem fala com seu amigo" (Êxodo 33,11). Em virtude dessa confiança, Moisés pede a Deus: "Mostra-me a tua glória", e a resposta de Deus é clara:

“Farei passar diante de ti todo o meu esplendor e proclamarei o meu nome... Mas tu não poderás ver a minha face, porque nenhum homem pode me ver e permanecer vivo...Eis um lugar perto de mim...Tu me verás por detrás, mas a minha face não pode ser vista” (Êxodo 33,18-23). Por um lado, há agora um diálogo face a face como entre amigos, mas por outro há a impossibilidade, nesta vida, de ver a face de Deus, que permanece escondida; a visão é limitada. Os Padres dizem que estas palavras, " tu me verás por detrás”, querem dizer: tu podes somente seguir a Cristo e seguindo vê por trás o mistério de Deus; Deus pode ser seguido vendo as suas costas.

Eu acredito que hoje nós continuamos a ver Deus. Ficamos um pouco confusos com as narrações da Bíblia. Mas é preciso recordar que elas são releituras de fatos históricos, à base da fé. Quantas vezes escutamos históricas contadas, que lendo com um fé muito intensa, parece que aconteceu um milagre, que havia uma presença divina... Isso é prova que Deus está conosco também hoje. Isso é até mesmo confirmado por expressões quotidianas tais como "graças à Deus", "se Deus quiser". Deus é, como na Bíblia, Emanuel, Deus-conosco.