Embora já tenhamos tratado do assunto (veja aqui), o tema do casamento, do divórcio e da vida a dois em geral é muito comum entre as perguntas do nosso site.
Há várias perguntas, elencadas abaixo, que aproveito para responder com um mesmo texto:
* Rodrigo, de Bostom, pergunta: Estamos juntos há um ano, mas não somos casados legalmente. Isso é pecado? Quero que mostrem na Bíblia o que Deus fala sobre isso;
* Messias, de Vitória da Conquista: Pode o divorciado casar de novo?
* De Diadema, Rildo questiona: Gostaria de saber se é pecado se divorciar.
* Pierre, de São Vicente: É lícito ao homem cristão ou não cristão se casar mais de uma vez?
*E, finalmente, Silvio, de Belém, diz: Tenho uma duvida ainda muito grande em relação ao divórcio. Já li vários artigos e a própria Biblia, mas parece que sempre a dúvida aumenta. Eu casei com uma prima e desde o começo o nosso casamento foi mal; já casamos com ela grávida. Hoje, sou convertido a Cristo e nos divorciamos. Quero saber: foi certo me divorciar? Posso casar de novo?
Primeiro de tudo gostaria de sublinhar uma premissa importante. A Bíblia foi escrita dentro de um período cujo contexto é importante analisar. Naquele tempo existia o problema do divórcio, mas não existia, por exemplo, o problema da convivência, sem nenhuma implicação legal. A Bíblia é muito vital e o cotidiano faz parte daquilo que diz; porém trata dos problemas concretos do tempo em que foi escrita e não apresenta soluções diretas aos problemas atuais. Apresenta linhas guias a partir das quais podemos (e devemos - nós que cremos!) resolver os novos problemas de hoje, mas não vamos encontrar, claramente, uma solução, por exemplo, para a questão daqueles que convivem (número que aumenta cada vez mais) sem contrair matrimônio. Não podemos, nunca, pensar a Palavra de Deus como um manual onde encontramos o problema e a respectiva solução. Ela precisa ser refletida e então vivida.
Vamos ver dois textos fundamentais da Bíblia sobre o casamento, sobre a vida comum entre homem e mulher.
Gênesis 2,18-24: Deus, depois de ter criado o homem, julga que não é bom que o homem esteja só. Por isso cria a mulher, da costela do homem. Então o homem exclama: Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada ‘mulher’, porque foi tirada do homem! . Nos versículos 24 diz: Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne.
Mateus 19,3-9: Alguns fariseus se aproximaram dele, querendo pô-lo à prova. E perguntaram: “É lícito repudiar a prórpria mulher por qualquer motivo?” Ele respondeu: “não lestes que desde o princípio o Criador os fez homem e mulher? E que disse: Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne? De modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar”
Eles, porém, objetaram: “Por que, então, ordenou Moisés que se desse carta de divórcio quando repudiase?” Dele disse: “Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas no princípio não era assim. E eu vos digo que todo aquele que repudiar sua mulher – exceto por motivo de fornicação – e esposar outra, comete adultério.”

O primeiro texto, recordado também no texto de Jesus, fundamenta a relação entre homem e mulher. A mulher não é estranha ao homem, mas se complementam: é parte de sua carne. Em hebraico existe um jogo de palavra, que não aparece em português (homem e mulher em hebraico é ish e isha). O nome sublinha a união, a raiz comum, que existe entre os dois.
Poderíamos dizer que esse texto do Gênesis dá uma base antropológica, sem oferecer nenhuma recomendação moral. Na verdade, não é bem assim, pois dessa base ‘antropológica’ deriva a regra de comportamento. De fato, é dessa forma que pensa Jesus.
O texto de Mateus tem como pano de fundo uma controvérsia entre os judeus do tempo de Cristo. Entre eles, haviam alguns que toleravam o divórcio e outros que não o aceitavam. Há vestígios de uma clássica discussão entre dois mestres daquele tempo, Hilel e Shamai, sobre os motivos que justificavam a separação. De fato, no Antigo Testamento, na lei de Moisés, o homem pode se divorsiar de sua esposa, conforme é descrito em Deuteronômio 24, por qualquer motivo (se ela não encontra mais graças aos olhos do homem). Sobre essa questão intervém Jesus.
O ensinamendo de Jesu é bastante claro e sublinha a indissolubilidade do matrimônio. É verdade que em Mateus, em 19,9, o texto insinua que se pode repudiar a mulher em caso de “fornicação”, mas a tendência é dizer que essa exceção é um tipo de concessão temporária dada à comunidade judaico-cristã de Mateus, visto que nos outros textos paralelos que falam dessa passamgem (Marcos 10,11s; Lucas 16,18 e 1Coríntios 7,10s) não se acena a nenhuma exceção.
É preciso também entender o que significa “fornicação”, “porneia” em grego. Alguns dizem que se trata de fornicação no casamento, isto é, adultério, e então sustentam que esse texto fundamenta a permissão de divorciar em casos semelhantes, como acontece com as Igrejas ortodoxas e algumas protestantes. Os exegetas, invés, defendem que se fosse esse o sentido, o evangelista teria usado uma outra palavra no lugar de porneia, ou seja, moicheia. Porneia tem aqui provavelmente o sentido de zenut (prostituição), termo técnico usado pelos judeus para indicar toda união considerada incestuosa por causa de um grau de parentesco proibido pela Lei, conforme escrito em Levíticos 18. Tais uniões, consideradas incestuosas pelos judeus, podiam ser consideradas legais no ambiente pagão. O problema ocorria quando esses pagãos se convertiam ao cristianismo próximo ao judaísmo, que dava origem aos assim chamados judeus-cristãos. Para ir ao encontro a pessoas legalistas provavelmente a comunidade de Mateus tenha permido a separação nesses casos. Além dessas idéias, há quem diga que essa excessão tenha a ver com as ‘uniões sem casamento’ e, então, nesses casos a separação seria permitida, mas precisaríamos ter mais argumentos para tal teoria.
Lendo também as outras passagens no Novo Testamento é evidente que o casamento é considerado como algo permanente, que dura por toda a vida. Essa é a realidade, o fundamento sobre o qual deveríamos basear o nosso comportamento.
Talvez poderíamos parar por aqui a discussão desse tema e deixar a cada um a tarefa de medir-se com os seus próprios limites, com suas próprias falências. Porém creio ser importante fazer algumas considerações, digamos, a nível pastoral.
Cada igreja tem uma legislação diferente sobre o casamento. Basta pensar que um dos problemas à base da Igreja Anglicana existe exatamente essa questão. A Igreja Católica é muito intransigente e não discute a possibilidade de divórcio: alguém pode casar uma segunda vez somente em caso de morte de um dos cônjuges. Há, porém, a possibilidade que um matrimônio seja julgado nulo por um tribunal eclesiástico e nesse caso tanto o homem quanto a mulher são livres e podem contrair novo matrimônio, pois o primeiro não aconteceu. Isso pode acontecer quando existe possibilidade que houve influências externas e que o casamento não foi algo livre, por exemplo. Tais processos podem ser apresentados através de conversas com o próprio pároco, que conduz o caso ao tribunal eclesiástico. Para os católicos, sugiro consultar uma página de um canonista, onde há alguns artigos sobre esse tema (Fr. Ivo Muller).
O problema do divórcio em si não existe. Também na Bíblia parece pacífico que o casal possa se deixar, cada um seguindo a sua estrada. De fato, se um matrimônio não dá certo, não creio que é vontade de Deus que duas pessoas vivam infelizes, suportando-se por toda a vida. A dificuldade nasce a partir do momento em que se deseja casar com outra pessoa.
Quando às convivências, condivido um pensamento, mas reconheço que é uma opinião muito pessoal e, portanto, limitada. Na maioria das vezes existe uma inércia e/ou medo de assumir a própria situação. Muitos dizem que não casam, pois as questões burocráticas são complicadas ou existe a necessidade de ter que festejar. Às vezes isso acontece, mas o casamento pode ser um ato simples, sem as pompas exigidas pelo capitalismo, que também invadiu esse setor da nossa vida. Creio que se existe amor e vontade de viver juntos, não há por que não oficializar tal decisão; trata-se de um ato de coragem e ao mesmo tempo de respeito por si mesmo e, sobretudo, pelo outro/a. É claro que nem sempre as leis e os impedimentos permitem tal procedimento, mas quando não há problemas, vale esse conselho.
Gostaria de terminar dar uma palavra de esperança. A misericórdia de Deus é um tema constante na Bíblia. Não é uma regra e nem mesmo uma garantia para podermos pecar. Deus condiciona a própria misercórdia, respeitando a liberdade humana, à própria vontade individual ao reconhecimento da própria pequenez e à fé em Deus. Se pensamos em Maria Madalena, que segundo as leis da Bíblia deveria ser lapidada (veja Deuteronômio 22), não podemos não crer no perdão dado por Deus. E sobretudo, ai de nós que julgamos, simplesmente com a intenção de condenar. O segundo casamento é uma falta e não são poucas as vezes que pecamos. Temos, contudo, um Pai pronto para nos acolher, de braços abertos, porém esperançoso que mudemos de vida e nos convertemos.