A pergunta era mais complexa e aqui está transcrita na sua integridade:

Existe um filme na Neteflix sobre Maria Madalena, e este filme está mostrando uma outra Maria Madalena, ou seja, que ela era filha de pai rico e foi casada com um homem interesseiro nos seus bens que batia nela e a estrupava todas as vezes que queria fazer sexo. Isso foi até o dia quando ela fugiu de casa. O seu ex-marido então acusou-a de traição. O filme mostra que ela era uma mulher muito instruída, que falava várias línguas e de boa leitura para aquele tempo. Por isso acho que ela não era prostituta, mas sim foi envolvida pelos homens que queriam acusá-la de ser uma prostituta, para matá-la apedrejada.

Tem assuntos bíblicos que estão sempre na ribalta, aparecem sempre. Isso acontece por que há lacunas de informações nas fontes bíblicas e, principalmente, por que tem a ver com uma mensagem que é sempre atual. Um desses temas é Maria Madalena.

Ela é tratada como prostituta, santa, esposa de Jesus, apóstola e até feminista. É uma das personagens bíblicas preferidas nos meios não religiosos.

Embora sua presença seja muito expressiva nos evangelhos, dela pouco sabemos. Basicamente podemos dizer que dela Jesus expulsou sete demônio (Lucas 8,2) e que foi a primeira a encontrar Jesus Ressuscitado (Mateus 28,1; João 20,11-18), depois de ter sido testemunha da sua paixão (Marcos 15,40 e paralelos). Conforme diz Lucas 8, ela fazia parte de um grupo de mulheres da Galileia que acompanhava e apoiava a missão de Jesus.

Há uma confusão sobre Maria Madalena que influencia todo o sensacionalista que costumamos ver na mídia. Essa confusão nasce da sua identificação com outra mulher que aparece nos Evangelhos: a mulher adúltera de João 8. Mas Maria Madalena não tem nada a ver com ela.

Essa confusão é alimentada também por uma literatura histórica cristã, que são os apócrifos gnósticos. Neles Maria Madalena aparece próxima a Jesus, com comportamento estranho. Esses escritos, que são muito tardios e não podem ser considerados fontes históricas, precisam ser lidos no contexto do movimento gnóstico e fora da ortodoxia da Igreja.

 

Lendas e estórias

Provavelmente o silêncio das Escrituras sobre essa mulher - e tantos outros personagens – alimentaram no curso da história muitas lendas sobre ela.

A mais banal de todas é que, tendo sido resgatada por Jesus da prostituição, ela teria virado sua amante. Os dois teriam se casado e, quando foi crucificado, Maria esperava um filho dele. Esse filho teria nascido na França e dado origem à dinastia Merovíngia, que governou os francos de 400 a 700 depois de Cristo. Essa é a história que aparece nos livros publicados em 1982: O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln.

Um relacionamento amoroso entre Cristo e Madalena também é narrado em O Segredo dos Templários, escrito por Lynn Picknett e Clive Prince (1997) e no famoso O Código Da Vinci, de Dan Brown.

Outra história aparece em um texto de 1293, Legenda Áurea, onde o frade dominicano Jacopo de Varazze conta que 14 anos depois da morte de Jesus, Madalena e um grupo de cristãos, embarcados à força, foram atracar no porto de Marselha, no sul da França. Lá, Maria Madalena teria pregado e convertido muitas pessoas. Mais tarde, ela se retirou à gruta de Sainte Baume, onde terminaria se dedicando por 30 anos à penitência e à contemplação.

Existem também outras lendas que se escutam sobre ela. Há quem acredite que ela tenha sido uma mulher que decidiu fugir com um soldado romano. Depois de um tempo, ele a abandonou e ela virou uma prostituta. Foi quando se encontrou com Cristo e passou a ser sua seguidora. Também há a lenda de que ela tenha sido uma aristocrata, herdeira de um castelo na região de Magdala. Vivia numa vida de luxúria até conhecer Jesus e passar a segui-lo.

Outra lenda está ligada ao primeiro milagre realizado por Cristo: as bodas de Canã. A identidade dos noivos não é revelada pela Bíblia. Há quem diga que o matrimônio era entre Maria Madalena e João Evangelista. Por essa versão, entretanto, o noivo acabaria se encantando com o gesto de Jesus - e abandonado o casamento para se tornar discípulo. Deixada só, Madalena acabaria vivendo como prostituta e, muito tempo depois, encontrado Jesus conforme está nos evangelhos.

 

O filme da NetFlix

Não assisti o filme que você menciona. Mas li há alguns dias uma reportagem sobre o lançamento de um livro que fala de Maria Madalena como “uma mulher rica”. A autora é Jennifer Ristine e ela baseia sua tese nas escavações recentes que estão fazendo no local de onde Maria seria originária. Constata-se que é um lugar “rico” e a conclusão é que também a Maria que acompanha Jesus seria rica. Digamos que é uma dedução. Mas é verdade que Lucas diz que as mulheres que seguiam a Cristo o ajudavam “com seus bens” (Lucas 8,3).

Tais evidências não bastam para deduzir uma história como essa que você diz ter visto no filme. Obviamente se trata de um romance e de ficção. Diria que temos que concordar que nada mais sabemos de Maria Madalena fora do que está escrita na Bíblia. Tudo o que você ver nos canais de comunicação são apenas hipóteses e, na maioria das vezes, ficção. Se outras descobertas confiáveis não são feitas, temos que nos conformar com as lacunas e refletir somente sobre a mensagem que os evangelistas quiseram transmitir quando mencionaram Maria Madalena. Certamente não quiseram fazer uma biografia dela, pois essa não é a meta dos evangelhos.

Paramos no dado bíblico que temos: Maria de Magdala foi liberada por Jesus de sete demônios (não é sem importância o número 7, que na Bíblia significa totalidade). Primeiro de tudo, ser possuída por demônios não deve absolutamente ser ligado à prostituição, haja visto que Jesus libertou muitos homens de demônios e nenhum deles foi associado à prostituição (cf. Lc 4,33-36; Mt 8,28-29; Mc 1,23-26). A Bíblia simplesmente mostra que a Madalena foi uma discípula fiel, modelo da missionária cristã, que anuncia com alegria: "vi o Senhor" (João 20,18). Certamente não era uma coisa comum para a época e até hoje muita gente não entende isso direito. Pode até ser que na tradicional atribuição de "prostituta" a Maria Madalena exista uma sútil visão machista, que não consegue entender a lógica divina da revelação, que subverte os esquemas tradicionais e é capaz de eleger uma mulher como a primeira testemunha do evento mais importante da história da salvação.