Uma pergunta muito interessante e difícil de responder. Trata-se de saber se a Bíblia "serve" sempre, ou se temos que tomar só aquilo que é fácil de aplicar na nossa vida. A pergunta vai ficar aberta, quem sabe provocando a reflexão dos nossos amigos visitantes. De qualquer forma proponho alguns pontos de reflexão.

A Bíblia é uma unidade

Já desde a antiguidade se afirmou que não podemos excluir pedaços da Bíblia, escolhendo só o que é mais fácil de interpretar ou apenas aquilo que diz respeito à nossa vida moderna. Foi uma questão posta principalmente com Marcião, que propôs excluir completamente o Antigo Testamento, pois retinha que o Deus do Antigo Testamento era diferente do Deus do Novo Testamento. Invés é o mesmo Deus. Com certeza a percepção que o escritor sagrado tinha dEle mudou no curso na história. A revelação, de fato, se dá na história e "cresce" a compreensão sobre quem é Deus à medida que, historicamente, a humanidade se aproxima de Cristo.

Por isso, para nós que pretendemos cada vez mais nos aproximar de Jesus, é importante seguir os passos percorridos pelo Povo de Deus para podermos acolher de forma eficaz o ensinamento divino.

Deus "ensina" a humanidade com paciência, se revela respeitando o "tempo" do ser humano. Uma criança não nasce sabendo tudo. E quando fica grande não pode renegar as etapas pelas quais passou quando era criança. Um matemático ilustre, que sabe resolver equações complicadas, não pode rejeitar que um dia aprendeu adições simples, como 1 + 1. Da mesma forma, se hoje sabemos que Deus é amor, que nos aconselha a amar nossos inimigos, não podemos rejeitar o fato histórico que um dia se pensou que fosse Deus que comandasse a guerra, a destruição de povos inimigos.

Essa questão está intimamente relacionada com a revelação. Deus não dita a Bíblia, mas inspira os homens que a escrevem, condicionados pelas características do próprio tempo.

Inerrância da Bíblia

A Dei Verbum, documento muito conhecido entre os católicos, afirma que 

os livros da Bíblia insinam, sem erro, a verdade que Deus quis revelar aos homens para a sua salvação.

Destas afirmações se vê que na Bíblia não existem erros. Por outro lado, diante de certas narrações e situaçãos que encontramos nela (violências, mortes, estupros, etc), não se pode deixar de perguntar até que ponto aquilo que é escrito na Bíblia é para ser considerado ‘divino’, ou seja, ‘bom’ e ‘verdadeiro’.

Aqui cito uma explicação já dada aqui no site:

É necessário fazer uma importante distinção entre ‘aquilo que serve para a salvação do homem’ (a mensagem, a Palavra de Deus) e o modo através do qual esta mensagem é comunicada aos homens, ou seja, a linguagem: o uso de expressões, das maneiras de dizer, as imagens e os símbolos comuns da época em que tais textos foram escritos, os gêneros literários. Todos esses aspectos são intimamente ligados ao ambiente e à época em que os livros nasceram. É importante reconstruir este ambiente para entender o por que e em que sentido os autores sagrados escreveram assim: a situação política e social, a vida quotidiana com as suas imagens e símbolos; as expressões linguísticas típicas, a linguagem usada para a comunicação na vida comum, nos tribunais ou para fazer acordos e contratos...

Um exemplo. Onde se fala de ‘chifre’ é preciso saber que no Médio Oriente de época bíblica (como também naquele atual) o ‘chifre’ é uma imagem usada para indicar força, potência e sabedoria. É usado para indicar, por exemplo, a força vitoriosa do Messias (Sl 18,2 – hebraico keren, que as bíblias normalmente traduzem como ‘força’, mas deveria ser ‘chifre’. Ver também os salmos 132,17 – chifre de Davi - e 148,14 – chifre do povo). Mas no mundo latino sabemos bem que não é um símbolo positivo: quem tem ‘chifres’ e uma pessoa traída e que merece compaixão. Desse modo fica bemclaro como seja necessário interpretar o símbolo no seu contexto cultural para entender em que sentido o Messias tem ‘chifres’.

É um pequeno exemplo para mostrar que a mensagem (nela está o aspecto verdadeiro: a força vitoriosa do Messias) é diferente da linguagem (o significado do símbolo ‘chifre’), que é inerente ao lugar, à época e às pessoas que escreveram os livros bíblicos e que foram os primeiros destinatários.

Mensagem de certos textos

Nem sempre é fácil de tirar mensagens de textos complicados, como por exemplo esses que você citou (Deuteronômio 27 -29). Na verdade, nesses capítulos existem muitos elementos que fáceis de entender e aplicáveis à nossa vida. Trata-se de um discurso de Moisés, que recorda ao povo escolhido a necessidade de cumprir, colocando em prática, as normas do "contrato" com Deus, escolhido como Deus do Povo. Mas, realmente, às vezes nos deparamos com textos que nos deixam em dúvidas sobre a validade da sua mensagem.

Repetimos aquilo já dito: fatos históricos servem para Deus se revelar, mas a linguagem usada nem sempre é correta e serve para nós. Ela precisa ser decifrada, entendida, lida com senso crítico. Há textos, sem dúvidas, que podem serem deixados de lado, para ser interpretados com instrumentos adequados, com conhecimentos científicos. De qualquer forma, toda a Bíblia tem valor e deve ser considerada como Palavra de Deus, revelação através da história humana.