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Texto Publicado em
RHEMA, v. 8. n. 29, Juiz de Fora, 2002, p. 85-102.
Horizonte Teológico jan/jun/2003, p. 75-98.
Convergência, Ano XXXIX, n. 369, jan/fev/2004, pp. 48-60.

1) Ponto de partida:

A estrutura de violência e de exclusão nos fragmenta e está nos deixando em cacos. É hora de recompor os cacos em um grande e articulado mosaico; é hora de re-integrar as nossas forças e as nossas energias vitais.

Vivemos um tempo perigoso. Tempo de fundamentalismo, de céus povoados de anjos e entidades, de demônios por todos os lados, de gritaria de deuses, de promessas, de busca insaciável de bênçãos, de procissões, de peregrinações, de necessidade de expiação, de moralismo, de religiões sem Deus, de salvação sem escatologia, de cristianismo light, de libertações que não vão muito além da auto-estima.

Clamores ensurdecedores brotam dos porões da humanidade. A mãe Terra clama para ser salva. Medo, insegurança e instabilidade atingem a todos.

Atualmente, impera a mística anti-evangélica do descompromisso com os pobres. Estes, além de empobrecidos e marginalizados, são acusados de serem os responsáveis pela sua situação de miséria. Inverte-se a realidade: verdugos tentam parecer bons samaritanos e vítimas são consideradas vagabundas, irresponsáveis e bagunceiras.

Há uma busca frenética por experiências religiosas, mas pouca experiência de Deus. Esta, como ensina, com muita propriedade, João Batista Libânio, nos leva a ser mais humanos, solidários com sofredores e indignados frente injustiças e sistemas de opressão e exclusão. É uma época de muita religiosidade e de pouca Religião.

 

2) O que deve ser Religião?

Segundo a etimologia da palavra, diz-se que, no seu sentido mais profundo, Religião (que vem do latim) é re-ligare; re-légere; re-elígere:

 

2.1) Religião verdadeira nos re-liga:

a) Com Deus, nossa fonte primeira - o mistério de amor maior e inefável, que nos envolve, nos permeia, nos perpassa e nos liga a todos e a tudo (Sl 138);

b) Com o outro (o próximo) - prioritariamente com marginalizados e excluídos; ajudando-nos a estabelecer vínculos efetivos, afetivos e de comunicação para que possamos viver e conviver;

c) com a natureza / toda a Criação - a mãe Terra, a irmã água, o irmão sol, o irmão oxigênio, plantas, animais, etc: a Religião nos integra na grande comunidade da vida.

d) conosco mesmos – no seu sentido mais genuíno, a Religião nos guia até o mais profundo de nós mesmos, nossos medos e sonhos, nossas forças e fraquezas; por ela transborda o imenso e belo potencial de vida existente em nós e no nosso entorno: beleza, força e energia vital.

 

2.2) Religião verdadeira nos ensina a re-ler:

- ler de novo, interpretar, com senso crítico e criativo, a realidade do que somos e a que nos envolve. Reavaliar o sentido que damos a vida, nossas posturas, acertos e desacertos. Em nossa caverna global, sob a batuta da mídia, funciona, a todo vapor, a indústria do senso comum, do entretenimento fútil e da desinformação. Informações sem valor para uma vida de mais qualidade nos anestesiam e nos intoxicam. Os grandes meios de comunicação super-valorizam o negativo, o exótico, as tragédias de apelo sensacionalista, fomentando a cegueira e a paralisia. É preciso reler, re-interpretar, não se acostumar, não banalizar, não ser ingênuos/as. É preciso desconfiar de muitas coisas que nos são apresentadas. É preciso discernir. "Como é que vocês não sabem interpretar o tempo presente?" (Lc 12,56).

 

2.3) Religião verdadeira é também eleger de novo:

- escolher melhor, fazer opções libertadoras e éticas diante dos desafios que se colocam para nós.

 

3) Religião X religiosidade

Grande parte das expressões religiosas atuais não ajuda a vivenciar os sentidos acima descritos de Religião. Deixam as pessoas alienadas, ensimesmadas, cada vez mais cegas e impossibilitadas de trilhar caminhos que levem a um bonito processo de humanização. O máximo que a explosão religiosa gera são pessoas assistencialistas, dóceis nos relacionamentos e caridosas, enfim, pessoas mansas como ovelhas. Quantas vezes, em nome da Religião, se faz exatamente o oposto do que deveria ser feito por alguém que se diz “religioso”? Com muito acerto, o teólogo da libertação João Batista Libânio nos alerta que vivemos hoje uma era de “neopaganismo, travestido com aparência religiosa”.

No verdadeiro sentido acima descrito e observando as pessoas que freqüentam as igrejas, parece que há pouca religião. Aparências religiosas são abundantes, ostensivas e enganam muita gente, mas em 2/3 da humanidade, no meio do povão, há religião no bom sentido e há Mística Evangélica.

 

4) Mística Evangélica de Jesus

É muito salutar olhar no “retrovisor” que a Bíblia representa e resgatar a experiência mística e espiritual de Jesus Cristo. Tentamos revelar aqui alguns traços da Mística Evangélica do Homem de Nazaré. Para evitar o clichê, vamos esclarecer o que entendemos por mística: referimo-nos a uma Mística Evangélica, não à mística capitalista neoliberal, que insufla o espírito dos ídolos do mercado e do capital e reduz pessoas humanas a meros consumidores, nem tampouco às místicas esotéricas, que tratam a pessoa desvinculadamente do que a envolve.

"Mística significa motivação profunda e sólida para não apenas estar na missão, mas para fazer dela sua vida e sua causa maior. É o ideal que a pessoa tem para realizar com totalidade o seu trabalho”, afirma, com muita sensatez, nosso irmão Marcelo Barros. Em outros termos, mística é o segredo que motiva o mais profundo de nossas vidas, que não é somente intelectual ou ideológico, mas é um compromisso de amor. Falamos de mística cristã, que equivale a “espiritualidade”, que não tem nada a ver com “espiritualismo” e sim com “ser conduzidos pelo Espírito de Deus”. Espírito que brota (ou germina) das entranhas da História da comunidade de vida. Espírito que irrompe principalmente a partir dos porões da humanidade, onde a vida é negada. Não se trata de “peruca em cabeça de careca”.

Leonardo Boff, com olhar penetrante, ensina que “a espiritualidade não é monopólio das religiões, mas uma dimensão do humano. É a nossa capacidade de dialogar com o Eu profundo e de ouvir os apelos do coração. É a consciência que se sente inserida num todo maior e que capta o elo secreto que tudo liga e re-liga à Fonte primeira de todo ser, chamada Deus. Com ele entretém diálogo de intimidade e de amor. A espiritualidade é a aura que sustenta os valores de solidariedade, com-paixão, cuidado e amor, fundamentais para uma sociabilidade verdadeiramente humana”.

Espiritualidade profunda que guia o ser humano, Mística envolve:

· paixão,

· compaixão e

· vontade transformadora.

Pela vontade transformadora, somos estimulados a sair de nós mesmos, a nos associarmos aos outros, a nos vincularmos a redes de solidariedade. Somos suscitados ao engajamento em lutas por transformações. De solidários/as passamos a militantes do Reino de Jesus, quando descobrimos que há uma imensa rede de pessoas e organizações que lutam pela construção de um mundo mais humano.

Pela paixão, vemos com os olhos do coração, nos entusiasmamos(2) por causas maiores.

Pela compaixão, vivemos na lógica do amor e da gratuidade. Compaixão não é sentir pena, nem comiseração. Significa o movimento das entranhas humanas (vísceras, ventre, coração) causado pela dor do outro ao ser visto. É sofrer com, sentir com, é se comover interiormente pela dor do outro. É ficar sensibilizado e afetado pela dor do outro. O sofrimento do outro contagia e o sentimos com o outro. Psicologicamente, compaixão é atender o outro, envolver?se com o que sofre e assumir com ele a sua dor. É dirigir a atenção à pessoa que clama por misericórdia. É fazer da pessoa, naquele momento, o absoluto da vida de modo que ela se sinta acolhida, valorizada, compreendida e envolvida. Prioritariamente, é pelo olhar ou pelo ouvir que a dor do outro flui para dentro da gente, fazendo nossas entranhas revolverem-se e todo o nosso corpo estremecer e sentir. A compaixão irradia das entranhas e se espalha por todo o corpo, como uma pedrinha jogada no meio do lago vai repercutindo até às margens. O coração dói, os olhos choram, a cabeça se indigna, todo o corpo treme e daí brota o convite à fidelidade. A compaixão é como um vulcão que nos sacode por dentro e nos chacoalha até irromper nas mãos e nos pés - convite para ações solidárias, gratuitas e libertadoras. “A estrutura da Compaixão consiste em que o sofrimento alheio se interioriza na pessoa ao ser visto; este sofrimento interiorizado gera uma re?ação (ação, portanto)” ·. A Compaixão está não só no princípio da ação humana, mas acompanha toda a ação humana e deixa marcas indeléveis na pessoa que se deixou guiar pelo outro sofredor.

Mística Evangélica é:

· uma Boa Notícia para os pobres, isto é, para os cegos, surdos, mudos, presos, doentes e pecadores; enfim, para os marginalizados e excluídos, e

· uma péssima notícia para os opressores e “vampiros” dos pobres.

A Boa Notícia traz vida de qualidade para todos e para tudo a partir das vítimas.

A Mística Evangélica:

a) desaliena pessoas, gerando visão crítica e criativa;

b) transforma pessoas em protagonistas e sujeitas de sua própria história;

c) anima pessoas a não renunciarem à sua vez e voz;

d) liberta de todas as prisões;

e) cura integralmente;

f) habilita pessoas a dar e a receber o perdão, libertando de complexos de culpa e de traumas.

Abordamos a Mística Evangélica comprometida com os pobres: compromisso que gera engajamento comunitário ao lado dos pobres na luta por vida, por conversão pessoal, social e estrutural e que busca chegar à grande comunhão com Deus e à comunhão universal. No cara-a-cara com os pobres, eles nos interpelam, nossas máscaras caem; nos sentimos nus e três perguntas clamam por respostas existenciais:

 

5) Onde estamos? Onde está nosso irmão? O que estamos fazendo?

As perguntas de Javé, o Deus solidário e libertador, continuam ecoando e nos interpelando.

  • A primeira pergunta Deus dirigiu a Adão (= humanidade): “Onde tu estás?” (Gn 3,9).
  • A segunda, Javé dirigiu a Caim: “Onde está o teu irmão Abel?” (Caim havia assassinado seu irmão (Gn 4,8)).
  • A terceira pergunta, o Deus que não aceita idolatria fez ao Profeta Elias: “O que fazes aqui?” (I Rs 19,9.13).

Adão, Caim e Elias se viram em apuros. Existenciais, estas perguntas incomodam. Ao respondê-las com sensatez, vemos que a auto-suficiência pessoal e de alguns sistemas totalitários estão levando a humanidade à loucura.

Onde estamos? Estamos numa das maiores encruzilhadas da história humana. A crise é tão grande, que não há precedentes na história. Medo, instabilidade e insegurança generalizados e contagiantes nos encurralam em becos sem saída. Quais são as "motivações profundas e sólidas" para alimentar a nossa vida cristã? Como viver segundo o Espírito (Rm 8,4)? Qual é o Espírito que me anima em tudo que sou e faço? É possível perseverar? Nossa luta tem sentido? Não está sendo em vão? E os resultados? É melhor desistir? Mudar de luta?!!! Perguntas e mais perguntas povoam nossas mentes. Para quem está na luta, faz bem recordar que Jeremias lutou vinte e três anos sem resultados. Paulo apóstolo teve os três primeiros anos de ação missionária sem nenhum fruto, sem formar nenhuma comunidade. Jesus tinha no início da missão pública um grande apoio popular, mas no final só algumas pessoas permaneceram firmes ao seu lado: Maria, o discípulo amado, Madalena, etc... Jesus terminou como um aparentemente fracassado. Antes da experiência da Ressurreição tudo parecia ser um grande fracasso (Lc 24,13-24): "nós esperávamos..., mas ...". Onde arrumar forças para não desanimar, apesar de tudo? Urge ser como o poeta que afirma: “Faz escuro, mas eu canto”.

6) O núcleo da espiritualidade de Jesus.

Para poder viver e conviver comprometido com os pobres, Jesus era íntimo de Deus, a quem tratava com muito carinho. Deus era, nele, uma experiência de amor, não um conceito doutrinário ou teológico. Deus era em Jesus, uma experiência afetiva, afetuosa. A intimidade de Jesus com Deus se dava na oração e Ele orava em meio aos conflitos da vida pública. Uma característica básica da vida de Jesus é transitar da montanha para a planície, ou seja, dos “infernos da vida” para a intimidade com Deus. Jesus se preocupava em dedicar tempo à comunhão com Deus e conciliava militância com momentos de oração. Militância e Oração: uma alimenta a outra. Para Jesus ação não é oração - Ele pára para orar. Há quem considere que "a ação já é oração", o que é muito relativo. Na experiência de Jesus, era muito freqüente ele retirar-se para estar a sós com Deus. Dom Pedro Casaldáliga nos alerta: “Militante cristão precisa rezar pelo menos trinta minutos por dia.”

Na espiritualidade farisaica o centro da santidade está na capacidade de ser virtuoso. No modelo de Jesus, quanto mais na merda estou, mais Deus me ama e mais devo me abrir para Ele. Não há montanha a subir, não há virtude a servir de critério para o encontro com Deus. Há apenas uma coisa: Deus nos ama irremediavelmente, apaixonadamente. E quanto pior estivermos, mais nos devemos abrir a esse amor de Mãe. Porque a Mãe se preocupa mais com o filho doente, fraco, que está metido em uma porção de rolos. É com esse que ela mais sofre, é a esse que ela mais quer. É preciso deixar-se acolher, na linha do acolhimento que Jesus faz à prostituta, ao ladrão, ao sujeito condenado pelos fariseus, a todos os excluídos.

Enfim, Jesus foi um grande místico, na linha dos profetas. Viveu e cultivou uma relação amorosa e íntima (não intimista) com o Pai, Deus da Vida.

 

7) O Deus de Jesus de Nazaré

Para Jesus e para o cristianismo, o Deus verdadeiro está no outro, preferencialmente. Está em cada um/a de nós, mas está, por excelência, no outro. Deus não pede nada para si mesmo, não quer ser objeto do nosso amor. Deus é sujeito de amor. A quem diz a Deus: “quero te amar!”, Ele responde: “ficarei muito feliz se você amar o seu próximo, o outro, seu irmão”. “Não se preocupe comigo; ame meus filhos e filhas que são todas as criaturas”, poderia continuar Deus dizendo.

O Artista maior das nossas vidas não é "onipotente", porque não age como ditador impondo a sua vontade. Deus não é padrasto; não é paternalista; não é assistencialista. Ele não atropela as nossas liberdades. Deus é 100% amor; é pai e mãe. Por isso não impõe nada, mas se limita a propor ternamente. Podemos dizer sim ou não ao seu projeto libertador e humanizador e temos que assumir as conseqüências. Por ser amor, Deus é eminentemente "frágil", pois nos deixa livres, respeita o nosso direito de ser diferente, muitas vezes tem "uma paciência danada" conosco, e sabe que mais cedo ou mais tarde daremos a nossa adesão ao seu projeto de amor e de libertação que se realiza em tempos de exclusão. A ação de Deus é como fogo no capim seco ou como água morro abaixo: ninguém segura.

 

8) Elementos constitutivos da Mística de Jesus

Além da grande intimidade com Deus, manifestada na Oração, o que era espírito-espiritualidade para Jesus viver sua missão no compromisso com os pobres? Destacamos os seguintes aspectos:

  • A paixão de Jesus pelo Reino se tornou paixão (com-paixão) pelos marginalizados e excluídos (Lc 9,1-6). A raiz desta paixão e desta prática solidária e libertadora foi sempre, a comunhão íntima e amorosa com o Deus da Vida, Pai e Mãe de Amor.
  • A profunda amizade com Madalena, Lázaro, Maria, o discípulo amado e outros/as discípulos/as.
  • A noção de que era Filho dos profetas. Jesus era descendente de Abraão (no início, um “sem-terra”, sem futuro e sem bênção), de Moisés (líder da libertação dos escravos frente ao imperialismo egípcio), de Elias (ardoroso defensor de Javé e dos preferidos de Deus, implacável lutador contra toda e qualquer idolatria), de Amós (camponês vaqueiro que chamou os “latifundiários” de vacas de basã), de João Batista (líder de um grande movimento popular que queria construir um mundo social mais justo e igualitário). (Somos filhos/as não apenas de nossos pais).
  • Jesus cultivava no coração e na mente a mais profunda convicção expressa no Sl 72,15: "Não posso trair quem está na luta...! " Ai do líder que trai o seu povo. Eis um exemplo: Allende, presidente constitucionalmente eleito pelo povo do Chile, foi morto em 11 de setembro de 1973, dentro do palácio do governo. Forças militares apoiadas pelos EUA fizeram um golpe militar e impuseram Pinochet no poder para liderar uma ditadura, que foi responsável pelo desaparecimento de trinta mil pessoas. Allende legou exemplo raro: preferiu a morte à infâmia. "Pagarei com minha vida a lealdade do povo", disse em sua última mensagem, pela rádio Magallanes, quando qualquer resistência era inútil. E terminou pondo a esperança no horizonte, contra o vento e maré: "superarão outros homens este momento cinzento e amargo, no qual a traição pretende impor-se,... continuem sabendo que antes cedo do que tarde, se abrirão as grandes alamedas pelas quais passará o homem livre para construir uma sociedade melhor.”
  • A intuição de que devia honrar o sangue dos mártires: João Batista, as crianças assassinadas por Herodes, o sitiante Nabot (I Rs 21), os camponeses, vítimas da pesada tributação do Império Romano, etc. O sangue de Jesus ferveu e Ele ficou indignado ao saber que seu grande amigo João Batista havia sido preso por Herodes (Mc 1,14-15). O profeta João Batista gerou subversão e incomodou os poderosos. Era preciso eliminá-lo. Jesus leu os fatos da Vida e concluiu: "Chegou a minha hora, agora tenho que continuar a missão de João Batista."
  • O fato de ser filho de José, o justo, (lavrador e carpinteiro) e de Maria, uma mulher do Deus dos excluídos e dos excluídos de Deus.

9) Jesus se encontra com os pobres e com eles se compromete

A vida de JESUS, que conhecemos também por suas posturas e ensinamentos, se caracteriza por ENCONTROS com pessoas do seu círculo de amizade e principalmente com pessoas do mundo dos excluídos. Ele:

  • teve, esporadicamente, “encontros” com pessoas do Poder dominação, que foram mais “desencontros” do que encontros, pois marcados por atritos;
  • mergulhou na conflitividade da Vida: foi a Jerusalém (centro do poder assassino), cidade em que pisou raríssimas vezes, no exato momento em que era mais procurado pela repressão;
  • inseriu-se na História; assumiu a história com suas potencialidades e limitações; encarnou-se; não foi um fantasma, nem um mágico;
  • foi um inconformado com as injustiças e com os sistemas injustos; foi um sonhador, uma pessoa que cultivava a utopia bonita do Reino de Deus no nosso meio, tinha os pés no chão, mas o coração nos céus;
  • foi um profeta: alguém muito sensível, capaz de captar os sussurros e os cochichos de Deus através das entranhas dos fatos históricos;
  • foi, acima de tudo, uma testemunha, um mártir; não apenas disse verdades, mas doou a vida pelas verdades que defendia.

JESUS, e seu movimento, numa postura altamente irreverente, se deixa envolver, se apaixona, se compadece do povo sofrido, o que se revela num esforço de transformação:

  • desmistifica o que é mistificado pelo senso comum;
  • des-idolatra deuses e ídolos que concorrem numa imensa gritaria tentando seduzir as pessoas para projetos escravizadores;
  • des-sacraliza o Poder, desmascarando os poderes religioso-político e econômico que, endeusados, promovem grandes atrocidades;
  • des-dualiza a forma de encarar a realidade - com Jesus, “o véu do templo se rasga” (Lc 23,45) e “ninguém deve chamar de impuro aquilo que Deus criou” (At 10,15). Não há mais separação entre puro e impuro, entre santo e pecador, entre transcendência e imanência, entre dentro e fora, etc. Tudo e todos são banhados pela dimensão divina e transcendente da vida. Em cada um/a de nós estão o feminino e o masculino, o bem e o mal, o sagrado e o profano.

JESUS se tornou tão humano que acabou se divinizando. Pelo seu relacionamento íntimo com o Pai, ao qual chamava de papai, paizinho (abbáh, em hebraico), Ele nos revela uma característica fundamental que perpassa toda a experiência do povo de Deus da Bíblia: o Deus comprometido com os pobres é um Deus transdescendente, não apenas transcendente - sua transcendência se esconde na imanência. A partir do Êxodo, constatamos como Javé é um Deus que ouve os clamores dos oprimidos e desce para libertá-los (Ex 3,7-9). No início do Gênesis, o Espírito desce e paira sobre as águas. Em Jesus de Nazaré, Deus se encarna, descendo e assumindo a condição humana, tendo “nascido de mulher” (Gl 4,4). No Apocalipse, Deus larga o céu, desce, arma sua tenda entre nós e vem morar conosco definitivamente. Logo, um movimento de transdescendência perpassa toda a Bíblia. Esta característica se reflete em Jesus.

Por sua prática e por seus ensinamentos, com audácia, JESUS propõe uma revisão do núcleo da Religião:

  • Deus não mais está fora, nem acima, nem distante; nem é “onipotente”. O Deus de Jesus co-participa dos processos de libertação;
  • os meios tradicionais de relacionamento com Deus - oração, jejum e esmola – se relativizam;
  • o jeito de viver a Religião se des-hierarquiza. Jesus faz uma “revolução copernicana” ao colocar Deus dentro da Pessoa Humana, da História e das Relações;
  • aponta para a Comunhão de tudo com todos, da qual devemos participar, tomar parte como membros de uma teia da vida com vocação para o infinito.

JESUS resgata, integra, unifica, harmoniza todos com tudo numa relação de inter-retro-dependência, vivenciando há séculos o que Einstein nos alertou recente e cientificamente: "Os seres humanos são parte do universo. Se considerar como seres separados, à parte, é uma grande limitação. Temos que irradiar nossa compaixão a tudo".

Como discípulos e discípulas de Jesus Cristo somos convidados a ser sal e luz no mundo. As Igrejas devem estar dentro do mundo, com o mundo e para o mundo. Esta é a História conduzida pela humanidade. O Espírito de Deus, dentro de tudo, age de baixo pra cima e de dentro pra fora - irrompe como água da fonte.

JESUS se comprometeu com os pobres. Quem são os pobres de Jesus? Pobre é quem sabe que, para além das coisas, o que existe são relações. Pobre não confia no poder centralizado, confia no projeto da partilha (Jo 6,1-14). A Mística de Jesus nos faz perceber que, por trás de um café com pão de queijo oferecidos, estão sendo oferecidos muito mais do que coisas. Oferecem-se amizade, afeto, acolhida, atenção, reverência, gratidão etc.

JESUS se fez mediação, porque reconheceu em todos e em tudo uma fonte: cada pessoa é uma fonte inesgotável de riquezas, de belezas e de dignidade.

Caminho a ser trilhado:

 

a) partilha;
b) desenvolvimento duradouro;
c) preservação do ambiente;
d) construção da paz entre pessoas, religiões e povos.

JESUS se engaja na luta ao lado dos pobres de um modo relacional. Ele não substitui os pobres, não os carrega nas costas, não os tutela. Quem recebe um presente de braços cruzados é como porco que recebe uma pérola: não valoriza a dádiva recebida. Jesus não des-responsabiliza ninguém, pelo contrário, responsabiliza todos pela participação na vida se relacionando de uma forma bonita, gratuita e libertadora (Lc 10,25-37).

 

9) Mística de Jesus a partir do Bom Samaritano

No episódio-parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) temos um eloqüente paradigma da Mística Evangélica comprometida com os pobres:

O samaritano era um estrangeiro, herege segundo os judeus, discriminado, tachado de pagão, um "impuro", um “bárbaro”; enfim um excluído que entrou para a história como o Pai dos Voluntários autênticos. Ele denuncia uma estrutura assaltante do povo sendo solidário de modo gratuito e libertador.

Em Lc 10,33-35, com riqueza de detalhes, o samaritano percorre os passos interligados e interdependentes da Compaixão que deságua na Misericórdia, um caminho de Mística Evangélica:

1. “Certo samaritano...”. um anônimo, herege segundo a religião judaica, impuro segundo a raça, pagão segundo a cultura. Um representante dos samaritanos que por 900 anos foram discriminados pelos judeus.

2. Estando viajando, se aproxima da realidade do caído e semimorto. Não passa adiante. Não levanta teorias que justificam a exclusão e aliviam a consciência. Interrompe seus planos e deixa?se guiar pelo inesperado, pelo inédito, pelo que acontece. O samaritano estava em viagem, porque estava trabalhando. Estava ocupado e provavelmente também preocupado com suas responsabilidades. Mas, por ironia da história, as pessoas que encontram mais tempo são as mais ocupadas. Diz a sabedoria dos engajados: “Se precisar de ajuda, procure alguém que está muito ocupado, pois este terá mais tempo”. Quem pouco trabalha não encontra tempo para ser solidário. Encontra tempo para milhares de coisas para enrolar a vida. “Tempo é questão de prioridade”, diz quem ama. Quem ama verdadeiramente sempre encontra tempo para estar com a pessoa amada. “Faz das tripas coração”, isto é, produz o tempo necessário para estar com o outro. O sacerdote e o levita voltavam do trabalho e teriam, em tese, mais tempo para se dedicar ao pobre assaltado, mas foram insensíveis.

3. “Chega junto...” O samaritano não fica à distância, na arquibancada da vida, se aproxima do outro que está em apuros. Pe. Júlio Lancellotti, vigário episcopal para o povo da rua, da capital de São Paulo, certa vez, quando saía da prisão, foi nervosamente interpelado pelo diretor da prisão: “Pode voltar lá dentro, pois os menores infratores recomeçaram outra rebelião lá e já fizeram alguns funcionários como reféns.” Pe. Júlio discerniu no calor do conflito e decidiu voltar. Ao entrar, pulou no meio dos menores rebelados e gritou: “Silêncio! Sentem todos!” Um menor grandão levantou-se e disse para todos: “Vamos obedecer, pois é o padre nosso amigo que está falando”. Pe. Júlio continuando conclamou os menores: “Vamos rezar um Pai Nosso. Pai nosso, que estás no céu ...” Todos rezaram e assim a rebelião foi contida. No dia seguinte, perguntaram aos menores: “Por que vocês obedecem ao Pe. Júlio e não obedecem aos guardas penitenciários?” Eles responderam em coro: “Pe. Júlio é gente fina; é nosso amigo; chega junto quando estamos em apuros; é verdadeiro; gosta de nós; não mente pra nós; não é pilantra”. Alguns menores foram torturados por dizerem esta verdade e denunciarem as arbitrariedades cometidas pelos guardas.

4. Vê o excluído semimorto. Não foi um olhar racional, cheio de explicações científicas sobre o sofrimento do outro. Entrega seu olhar ao outro que sofre. Olha com benevolência e ternura. Deixa que a dor do outro entre através dos seus olhos. Certamente foi um olhar penetrante. Passa a ver o mundo a partir da dor do outro. E se deixa guiar pela visão que vê o outro sofrendo. Diz a sabedoria popular que o que os olhos não vêem o coração não sente. Diz um provérbio indiano que os olhos vêm mil vezes mais do que os ouvidos escutam.

5. Move-se de Compaixão frente à dor do excluído. A dor do outro entra pelos olhos e invade todo o corpo. Penetra nas entranhas, no coração, revolvendo?os. Revira o corpo por dentro. Quem está comovido se entrega ao outro, não o agride. Sentir compaixão é associar à dor do outro partilhando-a. Dor partilhada é dor diminuída. A dor sentida pela pessoa excluída foi suavizada pelo odor da companhia do samaritano. Segundo o Dalai Lama, compaixão é admitir que a vida do outro é mais importante do que a minha própria vida; é orientar a vida a partir do outro que sofre. O outro se torna um absoluto na minha vida. Quem vai decidir se o meu trabalho vai continuar é a situação do outro.

6. Aproxima ainda mais da pessoa sofrida, se entrega gradativamente ao outro. É na proximidade que se dá o encontro face-a-face, o encontro do EU-TU. Foi assim que aconteceu com Moisés na sarça ardente. Jó, depois de passar por um processo dolorido de revisão da sua experiência de Deus, chega à conclusão que “antes eu Te conhecia somente por ouvir dizer, mas agora meus OLHOS Te vêem”. Quer dizer, Jó encontra-se face-a-face com um Deus solidário e libertador. Mas o encontro face-a-face com Deus se dá no encontro face-a-face com o outro, principalmente com o outro que está excluído, semimorto. Eis um exemplo: uma freira, desejosa de viver a contemplação no meio do povo excluído da periferia de Vitória da Conquista/BA, acabou desistindo de contemplar Deus face-a-face todas as manhãs e foi tentar ser um pouco solidária com o povo aflito da vizinhança. Um dia, enquanto visitava as famílias nos seus casebres, percebendo que muitas mães davam água com sal para tentar consolar os filhos que choravam pedindo alimento, a freira perguntou para uma mãe: “Por que você vendeu todas as camas, cadeiras e os móveis da casa?” A mãe respondeu: “Irmã, a senhora nunca vai conseguir entender o que significa uma mãe ver o filho chorar gritando que está com fome e não ter alimento para dar para o filho. Vendi todos os móveis, um a um, para comprar pão para meus sete filhos. Frio até que a gente agüenta, mas passar fome e ver os filhos pedirem alimento é ser cortada por dentro; mata a gente aos poucos. Nós mães não somos de ferro. Somos de carne e osso e amamos os nossos filhos”.

7. Cuida (fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas) do outro no imediato e no mediato. A Compaixão esquenta o corpo e particularmente o coração e aciona as mãos para a prática da Misericórdia. A solidariedade efetiva conclui o processo da Misericórdia. O samaritano vive na espiritualidade do CUIDADO com o outro e consigo mesmo. Eloqüentes são o como e o com quê o samaritano cuida do outro. Como? Com a experiência e a competência de quem já está familiarizado com o exercício da solidariedade. Com quê? Com os frutos da mãe terra e do trabalho (e suor) humano. Com produtos naturais o samaritano recupera a vida do outro: óleo, para curar feridas e vinho, que além de curar, dá alegria e ajuda a retomar a vida.

8. E colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o a uma pensão, onde cuidou dele... Fez-se solidário também no mediato, deu os primeiros socorros, mas depois encaminhou o semimorto para o restabelecimento completo. O samaritano não se contentou com o mínimo de assistência a alguém em perigo, mas deu seu tempo, seu dinheiro e o seu ser, sem calcular. O dom do dinheiro não é substituto, mas o complemento da ação pessoal. Ele amou “com força”, isto é, com os seus próprios bens econômicos. Ele mostrou que amar é agir com o coração, é ter cor-agem. Para o samaritano o grito por solidariedade é urgente. Seria tarde demais, ele chegaria atrasado, se o samaritano tivesse dito para o excluído semimorto: “daqui a pouco eu te ajudo”; ou “espera um pouco”; ou “quando eu voltar te ajudarei”; ou “depois que eu me aposentar eu te ajudo”; ou “quando eu ganhar na loteria eu te ajudo”; ou ... O samaritano cedeu o seu próprio jumento para carregar a vítima, desinstalando-se. Isto nos faz recordar a alegria com que o povo pobre, quando recebe uma visita, oferece a própria cama e vai dormir no chão. Muito diferente é chegar numa casa rica. A primeira coisa que se vê é uma placa com a seguinte inscrição “Cuidado, cão bravo” ou “Cuidado, cerca elétrica”...

9. Pagou dois denários... é muito dinheiro, provavelmente o equivalente a vinte e sete dias de alimentação naquela pensão. O que sugere que a vítima estava seriamente ferida e que ia precisar de muito tempo para se recuperar.

10. Deixa o assaltado encaminhado - foi embora, mas deixou marcas de bondade e saiu marcado positivamente para o resto da vida.

11. Não deixou nome e nem endereço. O samaritano soube a hora exata de entrar na vida do outro e o momento oportuno para sair da vida do outro. Foi embora. Agindo assim, impossibilitou que se criasse vínculo de dependência entre ele e a pessoa semimorta. Ele foi solidário de modo gratuito e libertador.

Enfim, o bom samaritano nos dá uma aula de como viver a Mística Evangélica do compromisso com os pobres.

10) Concluindo,

A partir da Mística Evangélica do compromisso com os pobres, que mensagem podemos tirar para a Espiritualidade atual? Jesus e seu movimento nos inspiram a fortalecer o princípio de subsidiariedade, ou seja, o maior não faça o que o menor pode e deve fazer. Deus não intervém no que pode e deve ser feito pela humanidade. Deus é santo, é o totalmente Outro. Nós somos criaturas co-criadoras. Incomoda a muita gente o fato de Deus parecer estar de braços cruzados na arquibancada da vida, enquanto 2/3 da humanidade são crucificados. Uma pessoa incomodada com o sofrimento dos inocentes questionou um sábio indiano: “Deus não faz nada para salvar os inocentes da cruz?” O sábio respondeu: “Você foi feito!”

A Mística Evangélica do compromisso com os pobres questiona veementemente e coloca em xeque as espiritualidades do “espirotosantismo”(2), desencarnadas, volatizadoras da fé cristã, alienantes, devocionistas. Todas as místicas que fomentam ou são cúmplices das lógicas capitalistas e fundamentalistas são desmascaradas por Jesus.

Na Mística de Jesus o que salva é o modo, o jeito, como se tecem as relações. A salvação acontece, não é dada como ato feito. Jesus, a grande Testemunha, não caiu pronto do céu. Jesus brotou da humanidade, de uma herança milenar de relações proféticas, místicas e autenticamente religiosas. Todo mundo colaborou, os bons e os maus, para que, em Jesus, Deus eclodisse na História. Com Jesus o véu da história cai, mas Ele não esgota o infinito. O movimento da vida continua rumo à comunhão maior com Deus e com tudo.

No final da vida, após ter perdido quase todo o apoio popular, Jesus teve que perguntar aos discípulos e discípulas: “Vocês também querem ir?” Ou: vocês topam a parada? O desafio está em nossas mãos. Jesus passou a cada dia a batata quente para nós. Corre conosco ao nosso lado, mas jamais nos substitui. Fé adulta tem aquele/a que ultrapassa a idéia de Deus como um “tapador de buraco”.

Vivenciar a Mística Evangélica do compromisso com os pobres implica um constante "trânsito cultural", uma espiritualidade de "diáspora", exodal, fora dos muros seguros do aparato institucional. Experimenta-se a tensão entre instituição e carisma, a insegurança, a busca e até a frustração com nossas igrejas. Recordemos Dom Antônio Fragoso, bispo emérito de Crateús/CE, que, despojado de todos os privilégios episcopais, tem como ideal de espiritualidade ser uma “pessoa comum” na periferia de João Pessoa, onde mora, vivendo a espiritualidade da “inutilidade”.

Muitos dizem que ser cristão autêntico implica caminhar sempre na contramão, mas pensando bem, quem está na contramão são os adeptos do Poder dominação. Este caminho é bom e santo. Caminhai por ele.

(1) Entusiasmar-se é descobrir-se dentro de Deus. Etimologicamente trata-se de “en-teo-asma”, ou seja, dentro do Espírito de Deus. É mais do que ter Deus dentro de si.

(2) Trata-se de uma tendência religiosa que absolutiza o Espírito Santo como condutor de nossas vidas, ofuscando assim a Trindade Santa que se compõe também pelo Pai e pelo Filho, Jesus Cristo.

 

BIBLIOGRAFIA DE APOIO

CASALDÁLIGA, P., Com Deus no meio do Povo, Col. Espiritualidade no conflito 2, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985.
COMBLIN, J., O povo de Deus, Paulus, São Paulo, 2002, pp.238-281.
MOREIRA, G. L., COMPAIXÃO-MISERICÓRDIA, uma espiritualidade que humaniza, Paulinas, São Paulo, 1996.
NOLAN, A., Espiritualidade do serviço aos pobres, Ed. Paulinas, São Paulo, 1992.
SOBRINO, J., Espiritualidade da Libertação, Estrutura e Conteúdos, Col. Teologia da Libertação – Comentários 10, São Paulo, 1992.
VV.AA., Espiritualidade e Mística, CESEP, Curso de Verão Ano XI, Paulus, São Paulo, 1997.


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