Uma instrução católica da Congregação do Culto Divino, publicada no fim de junho 2008(1), recomenda evitar nomear Deus com os derivados do 'tetragrama' (YHWH) sagrado nos textos e nos cantos litúrgicos e usar, em seu lugar, as expressoes linguísticas que se referem a Ele como 'Senhor'.

A palavra 'tetragrama' se refere às quatro letras hebraicas que compõem aquele Nome que foi vocalizado �??Yahweh,�?� �??Yahwe�?�, �??Jahweh,�?� Jahwe,�?� �??Jave,�?� �??Yehovah,�?� etc. A instrução católica tem como objetivo "preservar a fidelidade à tradição da Igreja antiga, que revela que o Tetragrama nunca foi pronunciado no contexto cristão, nem traduzido em nenhuma das línguas nas quais a Bíblia foi traduzida". O documento explica como já na tradução grega do Antigo Testamento (a Setenta) o Nome de Deus, "espressão da infinita grandeza e majestade de Deus, foi cosiderado impronunciável e, por isso, foi substituido na leitura da Sagrada Escritura por um Nome alternativo: �??Adonai�??, que quer dizer �??Senhor�??.

A práxis da Igreja antiga, a qual o documento se refere, tem suas raízes na tradição judaica que convida a não pronunciar o Nome de Deus. A Mishnah e o Talmud, textos sagrados da tradição oral dos judeus, dizem que a pronúncia do Nome esteve permitida até a destruição do Templo por Nabucodonosor, em 589 a. C. (Mishnah Berakhot, 9,5), e, em seguida, foi permitida só aos sacerdotes (Mishnah Sotah 7,6) e somente no local mais sagrado do Templo, o Santo dos Santos, em ocasião do Yom Kippur, o Dia da Expiação (Mishnah Tamid 7,2). Progressivamente, por causa do crescimento da irriverência e da decadência do nível espiritual, o Nome foi pronunciado sempre menos e com voz baixa (Talmud, Yoma 40) até chegar à proibição final, ocorrida depois da destruçao do Templo em 70 d.C.

O porque da proibição

A recomendação para não pronunciar o tetragrama divino é feita, pelo documento catolico, para "encorajar a mostrar reverência ao Nome de Deus na vida quotidiana, pondo ênfase na linguagem como ato de devoção e de culto". A própria Bíblia testemunha o extremo respeito em relação ao Nome de Deus como expressão da inefabilidade divina. No decálogo, em �?xodo 20,7, encontramos o mandamento que diz para �??não pronunciar o Nome de Deus em vão�?�. A palavra que traduzimos por �??em vão�?� pode ter diversos significados:
1. Uso superficial.
2. O �??nada�??, que são os ídolos. Neste caso a proibição tem a ver com o fato de dar o Nome de Deus a realidades que não são Deus e que, por isso, as trasformariam em ídolos.
3. a falsidade típica do juramento falso, o perjúrio. Com a proibição, nesta perspectiva, tenta-se evitar o uso do Nome divino para afirmar falsidades em contexto jurídico e, em forma mais ampla, moral.
4. De forma mais genérica, poderíamos dizer que a proibição prevem o uso instrumental do Nome de Deus para fins que visam o própria vantagem.

A proibição de pronunciar o Nome tem raízes na absoluta trascendência divina. O nome, de fato, na tradição bíblica, contém a identidade da pessoa e dar nome às coisas é típico de quem as conhece e tem poder sobre elas. Na Bíblia, Deus, muitas vezes, muda o nome das pessoas a quem confia uma missão ou uma tarefa particular. Assim, só para dar um exemplo, em Gênesis 17,5, Abrão se torna Abraão, nome que significa �??pai de muitos povos�??.

Conhecer o nome de uma pessoa, biblicamente falando, quer dizer ter poder sobre ela. Um exemplo claro desta idéia encontramos na passagem da luta entre Jacó e Deus, contada em Gênesis 32. Não podemos deixar de observar, nos versículos 28-30, a admirável arquitetura da narração que discorre sobre o dizer o próprio nome. Jacó recebe um nome novo de Deus, �??Isreael�?�, que contém em si a recordação do encontro e o mistério da relação entre ele e Deus, mas quando ele tenta perguntar a Deus como se chama, Deus não lhe diz. O que Deus diz, aquilo que Lhe revela, é uma ação: a bênção; Deus se faz reconhecer como Aquele que abençoa Jacó/Israel.

Baseados nessas premissas, percebemos bem por que o Nome de Deus é indizível: para que Deus não seja reduzido a um Nome pronunciável (e manipulável) por um ser humano. Não pronunciar o Nome de Deus, portanto, indica um reconhecimento profundo do fato de ser criatura diante do mistério da inefavilidade divina e, ao mesmo tempo, testemunha que Deus é tão trascendente que não se pode jamais entender completamente a sua identidade, nunca se pode dominá-Lo.

O fato que em seguida, em �?xodo 3,14, Deus revela o seu Nome, não diminui o seu mistério e a sua trascendência. No momento em que Deus invia Moisés ao povo hebreu para libertá-lo, no momento em que Ele precisa tornar-se um interlocutor para o seu povo e ser reconhecível, então se revela com um Nome, que é um elemento concreto que possibilita a mediação. A partir deste momento Deus e o povo de Israel começam o caminho que lhe conduz �?? no Sinai �?? a reconhecer-se reciprocamente como eu/tu. Neste sentido o Nome é um dom através do qual Deus se torna alguém que o povo pode materialmente escutar; é, em certo sentido �?? como a sua Palavra �?? uma Sua �??encarnação�??. Quando, chegando ao Sinai, a Lei é dada de presente ao povo, no decálogo (�?xodo 20) o mandamento nos lembra que a relação com este Nome deve ser regulada, pois, se de um lado a ação da parte de Deus de entregar-se ao povo comunicando o próprio Nome exprime a vontade de relação recíproca, do outro subsite o fato que tal reciprocidade não é a mesma existente entre dois sócios quaisquer. O mistério do Nome que não pode ser pronunciado e que, contudo, deve ser conhecido, contém em si toda a dinâmica da relação entre Deus e seu povo, feita de aproximação e distância, de intimidade e respeito infinito.

�? interessante perceber que, mesmo não sendo presente na Bíblia uma passagem literal que proíba pronunciar o Nome, mas sim uma regulamentação de tal pronúncia, ainda no período bíblico (a tradução grega dos Setenta, feita no século II antes de Cristo, tende a substituir o Tetragramma com o termo �??Senhor�?�) e novo-testamentário, a tradição judaica e judaico-cristã evita pronunciar o Tetragrama sagrado como um sinal de respeito. Um respeito que se expressa atualmente entre os judeu também evitando de tocar com as mãos o texto enquanto se acompanha a leitura (função que se faz segurando uma pequena régua de prata que termina com uma mãozinha) e, na escritura, com a substituição do Tetragrama com �??Adonai�?? (Senhor).

A tal propósito é interessante ver de perto a origem do nome 'Yehova', ao qual se refere o documento católico. Em antigos manuscritos hebraicos da Bíblia foram colocadas no Tetragramma (YHWH) as vogais presentes em Adonai e daí surgiu "YeHoWaH". O texto, vocalizado desta maneira, tinha como único objetivo lembrar ao leitor que o Nome devia ser pronunciado, no momento da leitura, �??Adonai�?� e não literalmente. No século XVI um escriba alemão, que traduziu a Bíblia em latim, tomou o texto assim como estava escrito e escreveu o Nome com as consoantes e as vogais. Devagarinho, o uso deste nome assim vocalizado se difundiu, embora fosse uma composição artificial.

A proposta da mística judaica

Para enriquecer ulteriormente a reflexão sobre o Nome e sobre o que significa não poder pronunciá-lo, vale a pena lembrar uma interpretação sugestiva deste costume, presente na tradição da mística judaica, que coloca em íntima relação o mistério do Nome divino e o mistério da criação do ser humano.(2) Para compreender correttamente o método de interpretação seguido por essa corrente mística, é preciso ter presente que para tal tradição nenhum detalhe literal do texto bíblico é sem significado. Cada letra, cada sinal e até mesmo as pausas entre as frases têm um significado, revelam algo sobre Deus ou um detalhe do seu ensinamento que ficou escondido.

O texto em hebraico da narração das origens do ser humano, que se encontra em Gênesis 1,26-27, refere-se a Deus como a um plural: Deus disse: �??façamos o homem (literalmente: �??a criatura de terra�??) à nossa imagem�?�. Em seguida se diz: homem e mulher ele os criou. De acordo com a narração, o mistério da criação do ser humano contém em si algo que reconduz à imagem plural de Deus. A tradição cristã leu esta pluralidade divina também no sentido de imagem trinitária do Deus Criador, mas, em todos os casos, trata-se de uma imagem plural que espelha no homem e na mulher, que são distintos mas, ao mesmo tempo, o único resultado do mesmo ato criador, uma misteriosa união de duas individualidades.

Tal união de homem e mulher é exprimida em modo singular também em outros textos e circunstâncias. Em Números 11,12, Moisés é um pai que se ocupa de Israel como se ele mesmo tivesse dado à luz e tivesse sido a mãe; em Ester 2,7, Mardoqueu é para Ester o pai e a mãe que ela não possui; Em Isaías 49,23 os reis de Israel são como alguém que ajudam a criar uma criança. Se continuamos a leitura do texto da criação, nos damos conta que em Gênesis 3,12 Adão, depois de ter comido a fruta, responde a Deus: �??a mulher... ele me deu da árvore, e eu comi�?�; em Gênesis 3,20 a mulher é chamada de Eva �??porque ele era a mãe de todos os viventes�?�. Os exemplos poderiam continuar. Muitas destas frases estranhas podem ser explicadas gramaticalmente. O último exemplo do uso do pronome masculino hu (ele) é explicado com o uso indiferenciado do pronome, adaptável seja a ele que a ela. Os próprios mestres judeus, que vocalizaram o texto bíblico, colocaram sinais ao lado destes �??erros�??, indicando que não devem ser pronunciados como são escritos, mas em outro modo (indicam que nos exemplos que vimos, os pronomes hu-ele na verdade devem ser pronunciados hi-ela). Todavia, a tradição interpretativa mística, que não deixa passar nenhum sinal das Escrituras, se depara igualmente com esses casos e os perscruta conseervando-os, pois contêm um fragmento do mistério de Deus.

Outra particularidade, que revela significados escondidos, é ligada aos nomes das pessoas. Basta lê-los ao contrário. Moisés (msh), que em língua egípcia significa �??filho de�?� (como Ramses significava �??filho do (deus) Ra�?? ou Tutmosis �??filho do (deus) Tot), lido ao contrário se transforma em �??o Nome�?? (hsm), expressão que na Bíblia lembra o próprio Deus. O que acontece se a mesma lógica é aplicada ao Nome de Deus? O que obtemos lendo o Tetragrama ao contrário? O contrario de YHWH é "HWHY". Em hebraico se trata de dois pronomes, o masculino e o feminio, juntos: �??HuHi�?�, �??EleEla�?�.

A explicação que esta leitura mística dá a respeito da impossibilidade de pronunciar o sagrado Nome de Deus reside exatamente no fato que não se deve lê-lo tal como aparece, mas ao contrário. Aquilo que é revelado por este mistério assim evidente é que o pecado de Adão foi o de estragar o casamento entre a parte masculina e aquela feminina de Deus, realizando um �??divórcio�?? de sua componente feminina. �? também revelado que, na época do Messias, o masculino e o feminino se unirão novamente(3); que para a mística judaica o segredo do Nome está na unificação daquilo que cada um de nós tem de masculino e feminino; que Deus é e, ao mesmo tempo, ainda não é, o Uno �??Ela/Ele�??(4); e que cada vez que agimos criando novamente harmonia entre homem e mulher é como unificar Deus mesmo e manifestar ao mundo o Seu verdadeiro Nome, aquilo que Ele verdadeiramente é.

Conclusões

Para concluir com uma perspectiva cristã, a tradição mística judaica nos propõe um método de leitura certamente muito original. Visto, contudo, os resultados, sem dúvida, construtivos, essa leitura oferece um novo ponto de vista e um significado novo para um argumento muitas vezes considerado óbvio. Guardá-lo entre a gama de possíveis interpretações sobre as quais refletir pode unicamente ser positivo.

Ao acostar-se à práxis judaica e antigo-cristã de tratar o Nome divino considerando todo o Seu mistério, a igreja católica convida a refletir sobre a grandeza infinita e a potência de Deus. Para um cristão, tal reflexão faz com que se depare com o mistério de Cristo, o Kyrios/Senhor (cf. Romanos 10,9; 1Coríntios 2,8; 12,3) exaltando por Deus e por ele homenageado com �??o Nome que está acima de qualquer outro nome�?� (Filipenses 2,9). Diante deste mistério Paulo afirma, de maneira explícita e corajosa, que �??...näo há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus�?� (Gálatas 3,28).

Como único mediador entre Deus e a humanidade, para o cristão Jesus Cristo é ele mesmo que torna visível o Pai invisível (cf. João 1,18), rende os dois um único povo e destrói em si todo muro de divisão e toda inimizade. (cf. Efésios 2,14).


1. Committee on divine worship on the use of �??the Name of God�?� em the Sacred Liturgy. Congregation for Divine Worship and the Discipline of the Sacraments, Vatican, June 29, 2008. Texto em inglês disponível em www.sidic.org. Tradução em italiano em www.sidic.org .
2. Esta interpretação é documentada por Mark Someth no artigo: "Who is He? He is She: The Secret Four-Letter Name of God", CCAR Journal 40/III, 22-28.
3. Zohar I, 49b-50a, Soncino vol. I, pp. 158-59 e Gershon Scholem, Origins of the Kabbalah, Philadelphia, 1987, p. 177.
4. Mark Someth, "Who is He?...", 26.