A tarefa fundamental da comunidade cristã apostólica era anunciar a salvação em Jesus. Para tanto, era necessário esclarecer o escândalo da morte de Jesus na cruz, demonstrar a veracidade da ressurreição e gerar acatamento às suas interpretações dos fatos ocorridos com o Nazareno. 1
No intuito de cumprir a sua tarefa, as comunidades primitivas do cristianismo afirmaram ser Jesus o último e decisivo oferecimento da salvação de Deus ao mundo, estabelecendo assim grande tensão escatológica e apelo a decisão. O processo de estabelecimento da proclamação exigiu, essencialmente, três atitudes dos líderes e dos cristãos, minoria diante de um mundo helenizado e/ou judeus e submetido ao Império Romano: o desenvolvimento, o aprofundamento e a fundamentação da boa nova.

A partir das três exigências citadas, é possível perceber ser o antigo Testamento, que era a Escritura para esta comunidade, que oferecia a base material para a constituição de uma proclamação que atendesse as exigências do contexto vivencial das comunidades cristãos nesse período.

O Uso do Antigo Testamento na Pregação Neotestamentária

A profissão de fé e pregação cristã começam e se fundam, outrora e hoje,  na ressurreição de Jesus. A ressurreição de Jesus foi a oportunidade ideal para os grupos cristãos perceberem que a morte tinha um sentido e significado daquele conhecido até ali. O testemunho do apóstolo Paulo em Gálatas 1.11-23 é exemplo disto: a aparição do Cristo ressurreto o convenceu de que tinha que crer e pregar. 2

A Explicação dos Fatos e Eventos Ocorridos com Jesus �??segundo as Escrituras�?�

Para a comunidade primitiva, a ressurreição é a evidência de que o destino de Jesus deve corresponder à Sagrada Escritura. Desde o princípio, os cristãos primitivos entenderam que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos 3  �?? logo, a ressurreição deve ser uma possibilidade e o destino daquele que assumiu o ethos e as exigências do Reino. 4 Logo, a pregação apostólica assumiu o princípio de ser expositora da Escritura, 5 pois a paixão, morte de ressurreição de Jesus foram explicados a partir dos textos tidos por sagrados. 6

Dentro desta idéia, a Igreja exprime o que aconteceu com Jesus com palavras do Antigo Testamento: a divisão de vestes de Jesus, 7 seu brado na cruz, 8 a sua morte no madeiro ladeado pelos ladrões, 9 todo o seu sofrimento 10 - os fatos ocorridos na morte foram explicados como preditas nas Escrituras. A ressurreição também é assim compreendida. 11 A aplicação das Escrituras do Antigo Testamento para fatos e eventos foi se ampliando, alcançando até aspectos marginais da vida de Jesus, 12 como o local onde ele nasceu, 13 começou seu ministério, 14 e até mesmo a sua pobreza. 15
Porém, é preciso entender que a vinculação entre os eventos ocorridos com Jesus e os textos do antigo Testamento não surge apenas no modelo �??promessa-cumprimento�?�, nem pode se dizer que era fruto do estudo da Escritura, mas provavelmente era lembrada quando se narrava a paixão, oportunidade singular para relacionar os eventos da paixão ao Antigo Testamento. 16

Conceitos teológicos extraídos do Antigo Testamento

Muitas expressões da Igreja e conceitos teológicos são provenientes do Antigo Testamento. Deus, salvação, juízo, justiça, graça, crer, escolha, verdade, o convite do Salvador (Mt 11.28-30), os agradecimentos ou ações de graças (Lc 1.46-55; 68-79) �?? todos são apropriações e ampliações, muitos extraídos do Antigo Testamento.

Podem ser citados como exemplos do uso teológico do Antigo Testamento:
* Marcos e a tradição que o ampara (1.25 e Ml 3.1, Is 40.3 / 2.25 e 1 Sm 21.1-7 / 7.6s e Is 29.13 / 11.17 e Is 56.7, Jr 7.11; 12.1-12 e Sl 118.22s / 6.34 e Nm 27.17, Ez 34.5);
* Situação da comunidade e de cada indivíduo por força da nova realidade salvífica, principalmente em Paulo (Rm 1.17, Gl 3.11 e Hc 2.4 / Rm 3.4-18 e Salmos / Gn 15.6, Rm 4.3, Gl 3.6 e Abraão)

A Igreja não criou uma linguagem teológica nova, mas apropriou-se de grande parte da já conhecida linguagem veterotestamentária e a ampliou.

�??Diz a Escritura�?�

Diante das exigências da pregação, referências às Escrituras ficavam cada vez mais claras. Fórmulas introdutórias emprestadas da linguagem rabínica (�?�diz a Escritura�?�, �??como está escrito�?�, �??então�?�) indicam uma citação. O caráter destas é indicar a atualidade de uma palavra dita no passado, reconhecendo sua permanente eficácia. 17

�??Isto aconteceu para que se cumprisse a Escritura�?�

O Antigo Testamento não é utilizado de forma uniforme no Novo Testamento. As diferentes tradições e culturas cristãs exigiram usos distintos do testemunho veterotestamentário.

Num primeiro momento, o Antigo Testamento tinha grande importância para a apologética e instrução cristãs. As comunidades cristãs mais antigas eram judaicas, o tornou muito importante a interpretação baseada na palavra do Antigo Testamento.

Já num segundo momento, com a inserção do cristianismo em comunidades gentílicas, outras facetas e desenvolvimentos foram executados.18  Mas não houve ruptura com o Antigo Testamento: é possível perceber em textos dirigidos aos gentios menções do Antigo Testamento, o que evidencia que eles receberam instrução nas escrituras. 19

A expectativa escatológica das comunidades cristãs também estava firmada em palavras do Antigo Testamento. O livro apocalíptico por excelência do Novo Testamento, o Apocalipse, contém numerosas citações de textos veterotestamentários, o que demonstra esta nova aplicação do Antigo Testamento no decorrer da história do cristianismo primitivo.

Um dos desenvolvimentos mais importantes no campo das relações entre o Novo e o Antigo Testamento é a compreensão da �??história da salvação�?� (em alemão, o termo técnico é �??heilgeschichte�?�). Lucas, por exemplo, vincula os três períodos principais da Igreja em sua obra de dois tomos: o evangelho e os Atos. A sua história começa com a expectativa messiânica, despertada pela leitura e compreensão dos judeus piedosos do advento do Messias, passando pela manifestação de Jesus, a ação da Igreja e a parusia do Cristo. 20 


1 Sobre a relação da morte de Jesus e o Antigo Testamento, Schreiner afirma: �??A consciência da conformidade da morte do Senhor com a Escritura reclamava ao mesmo tempo uma explicitação e um desenvolvimento, como o atesta a história da paixão.�?� Ver: SCHREINER, Josef. A mensagem do Novo Testamento e a palavra de Deus do Antigo Testamento. In: SCHREINER, Josef & DATZENBERG, Gerhard. Forma e exigências do Novo Testamento. 2ª Ed. Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Teológica, 2004. p. 17.

2 Gl 1.15-23: 15 Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer e me chamou pela sua graça, aprouve 16  revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse entre os gentios, sem detença, não consultei carne e sangue,  17 nem subi a Jerusalém para os que já eram apóstolos antes de mim, mas parti para as regiões da Arábia e voltei, outra vez, para Damasco.  18 Decorridos três anos, então, subi a Jerusalém para avistar-me com Cefas e permaneci com ele quinze dias;  19 e não vi outro dos apóstolos, senão Tiago, o irmão do Senhor.  20 Ora, acerca do que vos escrevo, eis que diante de Deus testifico que não minto.  21 Depois, fui para as regiões da Síria e da Cilícia.  22 E não era conhecido de vista das igrejas da Judéia, que estavam em Cristo.  23 Ouviam somente dizer: Aquele que, antes, nos perseguia, agora, prega a fé que, outrora, procurava destruir.

3 At 2.24,32; 3.15,26; 4.10; 5.30; 10.40; 13.30,33; Rm 10.9; 1 Co 6.14; 2 Co 1.9; 4.14; Gl 1.1; Cl 2.12; 1 Pe 1.21.

4 1 Co 6.14; 2 Co 4.14; Ef 2.6.

5 Afirma Josef Schreiner: �??Remontam a uma época primitiva as manifestações estereotipadas da tomada de consciência de que o caminho de Jesus, marcado pela morte e ressurreição, era conforme a Escritura.�?� Ver: SCHREINER, Josef. A mensagem do Novo Testamento e a palavra de Deus do Antigo Testamento. In: SCHREINER, Josef & DATZENBERG, Gerhard. Forma e exigências do Novo Testamento. 2ª Ed. Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Teológica, 2004. p. 17.

6 Mt 21.42; 22.29; 26.54,56; Mc 12.24; 14.49; Lc 24.27,32,45; Jo 5.39; At 17.2,11; 18.24,28; Rm 1.2; 15.4; 16.26; 1 Co 15.3; 2 Pe 3.16. Ver também: Conferir: DIBELIUS, M. Formgeschichte, 184-189. SUHL, A. Die Funktion der alttestamentlichen Zitate und Anspielungen im Markusevangelium, 1963, p. 45-66.

7 Jo 10.24 (citação de Sl 22.18).

8 Mt 27.46 (citação de Sl 22.1).

9 Mc 15.28-29 (citação, no verso 29, de Is 53.12).

10 Lc 24.44 (citação genérica de �??Moisés, Profetas e Salmos�?�, ou seja, da Tanak judaica).

11 Em Lc 24.46, o próprio Ressuscitado explica, através das Escrituras, a morte, e também a necessidade de ressurreição do messias. Na mesma tradição lucana (At 13.33), o Sl 2.7 é entendido como uma menção à ressurreição. Paulo afirma genericamente que Cristo �??ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras�?� (1 Co 15.4). Fenômeno semelhante ocorre em todo testemunho neotestamentário, demonstrando a universalidade do fenômeno de se explicar os eventos ocorridos com Jesus pela via das Escrituras.

12 Afirma Josef Schreiner: �??O conteúdo de toda a missão de Cristo é caracterizado no episódio de Nazaré - com um �??hoje cumpriu-se esta Escritura�?�, tirado do Trito-Isaías (4.17-21).�?� In: SCHREINER, Josef & DATZENBERG, Gerhard. Forma e exigências do Novo Testamento. 2ª Ed. Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Teológica, 2004. p. 22.

13 Mt 2.6 e Jo 7.42 (citando Mq 5.2, o primeiro diretamente e o segundo indiretamente).

14 Mt 4.15 (citação de Is 9.1).

15 Mt 8.20 e outros textos relacionados com o Servo do Senhor (�??ebed YHWH) de Is 53.

16 Tese de SCHILLE, G. Das Leiden des Hern. Die evangelische Passiontradition und ihr �??Sitz im Leben�??, In ZThK 52 (1955). p. 161-205.

17 Conferir: KITTEL, G. Le,gw, D. �??Wort�?� und �??Reden�?� im NT. In: TWNT, 100-140; 110-112.

18 Por exemplo: o sofrimento dos cristãos é explicado pelo recurso às Escrituras. Marcos: 4.11s - citando Is 6.9s - para que, olhando... / indicação de que os discípulos passariam por sofrimentos (8.31).

19 Um exemplo é o Evangelho de Marcos, cuja mensagem contém menções ao Antigo Testamento, mas reflete uma mentalidade helenista.

20 Por exemplo, Simeão e Ana esperavam o Messias. Quando o encontraram, anunciaram que já era vinda a salvação de Jerusalém (Lc 1.38). O texto de Lucas afirma que outros esperavam redenção, indicando com isto o pertencimento de pessoas no Reino de Deus antes mesmo do advento de Jesus. Este tempo se completa com a ação e ministério de Jesus, e a ação da Igreja, com a menção explícita do retorno de Jesus (At 1.11). Já em Mateus, as fórmulas de cumprimento são utilizadas para provar que não só a paixão de Cristo, mas sua origem, vida e obras estão no Antigo Testamento (Início e fim do ministério de Jesus: 4.14ss; 21.4s / curas e parábolas: 8.17; 13.35 / paixão como cumprimento: 26.54,56)

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