Não é fácil ler os primeiros capítulos da Bíblia, onde encontramos também a história do “primeiro” pecado do ser humano: ter comido do fruto proibido, instigado pela serpente. Não é fácil de entender por que temos muito preconceitos derivados de um ensinamento que se perpetuou graças a séculos de tradição. É bastante normal identificar a serpente que aparece no pecado de Adão e Eva com o diabo, com o tentador. Mas se nos limitamos ao texto de Gênesis, essa relação não existe: gênesis não fala de nenhum demônio que tenta Adão e Eva. Só na época de Cristo, já dentro da tradição sapiencial, no Judaísmo, começou a identificação da serpente com um ser hostil a Deus e inimigo do homem, reconhecendo nela o Adversário, o Diabo.

Contextualizando o texto ao qual você se refere, os capítulos 2 e 3 do Gênesis contam a saga do ser humano, colocando a humanidade em um “jardim”, chamado por nós de Paraíso. Nesse jardim haviam duas árvores: uma era a "árvore da vida", que era bem conhecida também em ambiente e literatura extra-bíblica; a outra, existente só na Bíblia, era muito especial, chamada "do conhecimento do bem e do mal", da qual o ser humano não podia se aproximar, sob pena de morte.

E Javé Deus ordenou ao homem: «Você pode comer de todas as árvores do jardim. Mas não pode comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, com certeza você morrerá» (Gênesis 2,16-17).

Provocados pela serpente, a mulher e o homem não resistem e transgredem a proibição divina:

(A mulher) pegou o fruto e o comeu; depois o deu também ao marido que estava com ela, e também ele comeu. Então abriram-se os olhos dos dois, e eles perceberam que estavam nus. (Gênesis 3,6-7).

 

A serpente

Lemos nos 4 primeiros versículos do capítulo 3 de Gênesis:

A serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que Javé Deus havia feito. Ela disse para a mulher: “É verdade que Deus disse que vocês não devem comer de nenhuma árvore do jardim?” A mulher respondeu para a serpente: “Nós podemos comer dos frutos das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Vocês não comerão dele, nem o tocarão, do contrário vocês vão morrer’ ”.Então a serpente disse para a mulher: “De modo nenhum vocês morrerão. 5Mas Deus sabe que, no dia em que vocês comerem o fruto, os olhos de vocês vão se abrir, e vocês se tornarão como deuses, conhecedores do bem e do mal”.

Como dissemos acima, a identificação da serpente com o demônio é algo que aconteceu em tempos recentes. Praticamente em todo o Antigo Testamento não existe uma relação entre o pecado de Adão e Eva com o diabo. A serpente, na Bíblia é vista simplesmente como um animal, uma criatura divina com o dom da astúcia. Jesus inclusive convida a ser prudente como as serpentes (Mateus 10,16).

 

Por que a serpente e não outro animal?

O autor da Bíblia, sem o rigor historiográfico, conta o processo que o ser humano vive de rebelião aos preceitos de Deus, de falta de compreensão do “limite” imposto por Deus, única via para a vida feliz. Também nas fábulas de hoje, que são histórias que revelam a verdade da vida humana, os animais estão normalmente presentes e fazem parte da trama (veja a cigarra e as formigas). Devemos apenas entender por que o autor do livro do Gênesis usou  a serpente, deixando de lado a identificação com o demônio, feita a posteriori. Para isso é muito importante o contexto histórico do autor desse texto e do seu público, aspecto frequentemente ignorado por quem lê a Bíblia.

Os hebreus viviam em íntima relação com os cananeus, povo que morava na região da Palestina, quando chegaram na Terra Prometida. A Bíblia conta a epopeia da conquista da Terra Prometida e sublinha a inimizade entre os dois povos. Mas é provável pensar em interações e contatos que não aparecem deliberadamente na Bíblia. Com toda probabilidade certos costumes dos cananeus eram bem conhecidos pelos hebreus e não podemos excluir contatos e convivências. Isso fica muito claro quando a Bíblia fala da tentação à idolatria, escondendo nessa inclinação o perigo de querer seguir práticas existentes nos povos com quem os hebreus se relacionavam. E é bem provável que a história da serpente possa ser melhor entendida exatamente a partir das práticas comuns entre os cananeus.

No culto cananeu, a serpente era símbolo de fertilidade, símbolo frequente, e a mulher era um tipo de sacerdote que possuía essa virtude. Eram comuns entre os cananeus os “santuários” aonde vinha praticada a prostituição sagrada. Era praticada como uma tentativa mágica para vencer a morte e possuir a vida. Nesses locais cananeus, destacavam-se a figura da mulher e o símbolo da serpente, exatamente os dois personagens colocados como protagonistas na “caída” de Adão.

Essa é a razão pela qual encontramos a serpente na história do paraíso: ela lembra a tentação que existe da falta da fé no Senhor, o Deus dos hebreus, a vontade de “transgredir” o limite imposto pela Lei, que é a estrada que conduz à vida em Deus. Ao invés do compromisso moral, os hebreus eram tentados a viver uma religião que propunha um rito mágico que garantisse a vida. O santuário cananeu, com seus dois elementos fundamentais, encarna de maneira excelente essa tentação.

 

Concluindo

A serpente é um símbolo, tomado emprestado do contexto cananeu, que exprime muito bem uma realidade de falta de confiança em Deus que leva o ser humano a se inclinar para o mal, para a transgressão dos preceitos divinos. O texto do Gênesis tenta explicar a índole humana da possibilidade da escolha e, ao mesmo tempo, a inclinação antropológica que existe no ser humano de transgressão, coisa que certa teologia chama de “pecado original”.

A história do paraíso e do pecado de Adão e Eva é uma maneira de explicar a existência do mal, excluindo qualquer culpa divina. De fato, ali é mostrado que Deus não nos conduz à tentação, mas, ao contrário, a fé nEle pode nos libertar dela. É por isso que suplicamos para que "não nos deixe cair em tentação", pedindo a sua intercessão contra a nossa fraqueza.