A pergunta, na íntegra, é a seguinte:

Por que em Números 20, 1-13 o Senhor ficou tão bravo com Moisés e Arão a ponto de condená-los a não introduzir o povo na terra prometida? Moisés e Arão parecem não ter nenhuma culpa pela murmuração do povo pela falta de água e invocam o Senhor pedindo-lhe ajuda na tenda da reunião com toda humildade. Não se entende por que Deus diz: "vocês não acreditaram em mim de modo a que se manifestasse a minha santidade aos olhos dos israelitas". Qual foi o pecado deles em Meriba?

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Conhecemos bem essa história, pois dela deriva essa decisão de Deus de impedir a Moisés e seu Irmão de entrarem na terra prometida. Moisés, do Monte Nebo, vê a terra prometida, mas morre antes que o povo atravesse o Jordão. No fundo não concordamos com a decisão de Deus, afinal Moisés se empenhou tanto para tirar o povo da escravidão do Egito, conduziu essa gente pelo deserto e na hora “h”, não tem a satisfação de ver a missão cumprida. E o pior, como você menciona, parece que não cometeu nenhuma transgressão, pois como diz o texto de Números 20,2, o povo, diante da falta de água “amotinaram-se contra Moisés e Aarão”, que foram diante do Senhor e se prostraram. Yahweh então comandou que tocassem a pedra com o bastão que a água jorraria. E assim aconteceu e todos que murmuravam puderam matar a sede. E, de maneira imprevista, vem a sentença de Deus contra Moisés e Aarão:

“Visto que não crestes em mim, de modo a me santificardes aos olhos dos israelitas, não fareis entrar esta assembleia na terra que lhe dei”.

Não é fácil de entender a razão divina. Mas uma boa proposta de interpretação pode vir de uma visão ampla da história do Êxodo, no seu conjunto.

 

O contexto

A história das águas de Meriba acontece no final da caminhada do povo pelo deserto, digamos lá pelo 40º. Ano de caminhada, logo antes de entrar na Terra Prometida. Todos aqueles que tinham saído do Egito e que pela própria admissão não estavam preparados para entrar na Terra, haviam morrido. Viviam apenas aqueles que tinham menos de 20 anos, quando passaram o Mar Vermelho e a tribo de Levi, segundo a tradição judaica. Segundo a Bíblia, os únicos que tinham sobrevivido eram os líderes que conduziram o povo fora do Egito: Maria, Aarão, Moisés, Josué e Caleb. Números 20 começa falando da morte de Maria, sem ulteriores detalhes.

Depois disso Números começa dizendo: “Não havia água para a comunidade”. Essa é uma situação que se repete, pois algo parecido havia acontecido logo após a passagem do Mar, como contato em Êxodo 17.

A repetição desses dois eventos nos leva a considerá-los como um tipo de moldura, que enquadra tudo o que acontece entre um e outro evento. No primeiro evento, as pessoas que murmuravam eram aquelas que tinham saído do Egito; no segundo eram os filhos e os netos daqueles que haviam saído.

Na Bíblia, quando se apresenta uma moldura como essa, somos convidados a ver as semelhanças e diferenças que nos ajudam a entender todo o conteúdo que ela engloba.

 

Confrontando os dois textos

No final do artigo você pode ver em paralelo os dois textos (Êxodo 14,1-7 e Números 20,1-11), conforme a tradução da Bíblia de Jerusalém. Agora sublinho alguns elementos que nascem a partir desse confronto.

A primeira comparação que poderíamos fazer é a diferença da situação. Em ambos os casos o povo murmura porque foi tirado do Egito e levado para um local onde não tinha água. No primeiro caso, onde o deserto nem é mencionado (Êx 17,3), estão começando a longa caminhada. No segundo caso, onde o povo sublinha que está em um “terrível lugar”, os hebreus estão prestes a entrar na terra prometida, mas estão preocupados que não sobreviverão para alcançar essa meta. Diante da mudança da situação, precisamos prestar atenção se também Moisés muda.

No primeiro episódio, Moisés reage: “por que colocais Iahweh à prova”. Além disso, vai até o Senhor e pergunta: “Que farei a este povo?” No segundo episódio, é Deus quem reage diretamente à murmuração do povo e diz para Moisés: “Toma a vara e reúne a comunidade, tu e teu irmão Aarão. Em seguida e sob os olhos deles, dize a este rochedo que dê as suas águas. Farás, pois, jorrar água deste rochedo, darás de beber à comunidade e aos seus animais”. Depois Moisés fala, mas quando abre a boca é ambíguo, seja no tom que na intenção: "Ouvi, agora, rebeldes. Faremos nós jorrar água, para vós, deste rochedo?"

As palavras de Moisés deixam entrever uma certa dúvida. Esse titubear de Moisés poderia ser uma chave de leitura para o fato que ele é condenado a não entrar na terra. Sei que não tenho tantos argumentos para defendê-lo, mas poderíamos ver em Moisés uma falta de mudança necessária para o novo período que se aproxima, para a vida na Terra Prometida. E o que é essa mudança?

Não tenho uma resposta muito clara, mas talvez, depois de 40 anos, não se pode ser mais o mesmo e Moisés precisaria mudar. Ao invés, esse faz novamente o milagre e provavelmente gostaria que aquilo fosse tudo. De fato, desde sempre são as maravilhas operadas pelo Senhor que mantém viva a fé dos hebreus, como lemos em Êxodo 14,31:

Israel viu o grande poder que Iahweh havia mostrado contra eles. E o povo temeu a Iahweh, e creram em Iahweh e em Moisés, seu servo.

Quem sabe – essa minha é só uma provocação – agora que o povo tem a Lei, depois que Deus falou com Moisés no Sinai, os hebreus – e também Moisés – devem se apoiar na tradição, na palavra, seja escrita que oral. Se Moisés não sabe falar, pode ser que não é mais apto a conduzir o povo nessa nova etapa. A esse propósito, é interessante notar que no Sinai, embora houvessem muitos sinais, predominou a revelação através da palavra. De fato, lemos em Deuteronômio 4,12:

Então Iahweh vos falou do meio do fogo. Ouvíeis o som das palavras, mas nenhuma forma distinguistes: nada, além de uma voz!

É muito perigoso apoiar nossa fé naquilo que se vê. É provável que, estando prestes a entrar na Terra Prometida, depois do percurso pelo deserto, aquilo que Deus quer é que o povo creia nas palavras que Moisés deveria dizer, ao fazer o milagre de saciar a sede do povo. E é exatamente nisso que Moisés é reticente.

Seguem abaixo os dois textos bíblicos que falam do milagre de Moisés que mata a sede do povo.

Êxodo 14,1-7 Números 20,1-11
1Toda a comunidade dos filhos de Israel partiu do deserto de Sin para as etapas seguintes, segundo a ordem de Iahweh, e acamparam em Rafidim, onde não havia água para o povo beber. 2O povo discutiu, pois, com Moisés, e disse: "Dá-nos água para beber." Respondeu-lhes Moisés: "Por que discutis comigo? Por que colocais Iahweh à prova?" 3Ali o povo teve sede e o povo murmurou contra Moisés, dizendo: "Por que nos fizeste subir do Egito, para nos matar de sede a nós, a nossos filhos e a nossos animais?" 4Então Moisés clamou a Iahweh, dizendo: "Que farei a este povo? Pouco falta para que me apedrejem." 5Iahweh disse a Moisés: "Passa adiante do povo e toma contigo alguns dos anciãos de Israel; leva contigo, na mão, a vara com que feriste o Rio, e vai. 6Eis que estarei diante de ti, sobre a rocha (em Horeb); ferirás a rocha, dela sairá água e o povo beberá." Moisés assim fez na presença dos anciãos de Israel. 7E deu àquele lugar o nome de Massa e Meriba, por causa da discussão dos filhos de Israel e porque colocaram Iahweh à prova, dizendo: "Está Iahweh no meio de nós, ou não?" 1Os filhos de Israel, toda a comunidade, chegaram no primeiro mês ao deserto de Sin. O povo permaneceu em Cades. Ali morreu Maria e ali foi sepultada. 2Não havia água para a comunidade; amotinaram-se, então, contra Moisés e Aarão. 3E o povo contendia contra Moisés: "Oxalá tivéssemos perecido", diziam, "como pereceram nossos irmãos diante de Iahweh! 4Por que conduziste a assembléia de Iahweh a este deserto, para aqui morrermos, nós e os nossos animais? 5Por que nos fizeste subir do Egito para nos conduzir a este terrível lugar? É lugar impróprio para semeadura, sem figueiras, nem vinhas, nem romãzeiras e até mesmo sem água para beber!" 6Moisés e Aarão deixaram a assembléia e vieram à entrada da Tenda da Reunião. Prostraram-se com a face em terra, e apareceu-lhes a glória de Iahweh. 7Iahweh falou a Moisés e disse: 8"Toma a vara e reúne a comunidade, tu e teu irmão Aarão. Em seguida e sob os olhos deles, dize a este rochedo que dê as suas águas. Farás, pois, jorrar água deste rochedo, darás de beber à comunidade e aos seus animais." 9Moisés tomou a vara de diante de Iahweh, como lhe havia ordenado. 10Moisés e Aarão reuniram a assembléia diante do rochedo, e em seguida ele lhes disse: "Ouvi, agora, rebeldes. Faremos nós jorrar água, para vós, deste rochedo?" 11Moisés levantou a mão e com a vara feriu o rochedo por duas vezes: a água jorrou abundantemente, e a comunidade e os seus animais puderam beber.