Antíteses e Catálogo dos Vícios e Virtudes em Gálatas 5,16-26. Uma Chave de Leitura.

Prof. Dr. Odalberto Domingos Casonatto

Em Gl 5,16-26 Paulo tenta persuadir os cristãos da Galácia a seguirem o Espírito do Senhor Jesus Cristo e a não se deixarem influenciar pelos judaizantes. A força de seu discurso vem do gênero literário da antítese e do catálogo dos vícios e virtudes. Interpretar o texto segundo estas chaves de leitura é o caminho mais fácil para a compreensão do pensamento paulino.

Antes de abordarmos as antíteses e o catálogo dos vícios apresentamos uma tradução do texto e elementos para a compreensão da estrutura de Gl 5,16-26.

A tradução do texto Gl 5,16-26

16Ora, eu digo, caminhai segundo o Espírito e não satisfazeis o desejo da carne.

17De fato, a carne tem desejos contrários ao Espírito e, por sua vez, o Espírito contra a carne, de fato estas coisas se opõem uma contra a outra, a fim de que não façais o que quereis.

18Se, portanto, sois guiados segundo o Espírito, não estaís sob a lei.

19Ora, as obras da carne são manifestas, as quais são: fornicação impureza, libertinagem,

20idolatria, feitiçaria, inimizades, rixas, ciúmes, ira, discussões, discórdías, divisões,

21invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos previno, como já vos preveni: aqueles que praticam tais coisas, não herdarão o Reino de Deus.

22Ao contrário, o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé,

23mansidão, autodomínio. Contra tais coisas não existe lei.

24Ora, os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com suas paixões e seus desejos.

25Se vivemos segundo o Espírito, sigamos também caminhando segundo o Espírito:

26Não sejamos cobiçosos de vanglória, provocando-nos uns aos outros e invejando-nos uns aos outros.

Observações sobre a estrutura de Gl 5,16-26

A estrutura que utilizamos no estudo da perícope 5,16-26 é a estrutura concêntrica, (Martinez Peque, 1984 p. 110-111) que nos indica a temática escatológica do texto.

1. Estrutura concêntrica de Gl 5,16-26

A dimensão escatológica do comportamento cristão no caminhar segundo o Espírito.

Fórmula introdutória

16aOra, eu digo,

 

A. Caminhar segundo o Espírito

a) Convite a caminhar segundo o Espírito e não segundo a carne

16bCaminhai segundo o Espírito e não satisfazeis o desejo da carne.

b) A antítese carne – Espírito

17De fato, a carne tem desejos contrários ao Espírito e, por sua vez, o Espírito contra a carne, de fato estas coisas se opõem uma contra a outra, a fim de que não façais o que quereis.

a’) Efeitos do caminhar segundo o Espírito (inclusão de forma e conteúdo)

18Se, portanto, sois guiados segundo o Espírito, não estais sob a lei.

 

B. Antítese entre as obras da carne e o fruto do Espírito

a) As obras da carne (catálogo dos vícios)

19Ora, as obras da carne são manifestas, as quais são:

Fornicação, impureza, libertinagem,

20idolatria, feitiçaria, inimizades,

rixas, ciúmes, ira,

discussões, discórdias, divisões,

21ainvejas, bebedeiras, orgias

e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos previno,

b) Herança do Reino de Deus (centro escatológico)

21bcomo já vos preveni: aqueles que praticam tais coisas,

21cnão herdarão o Reino de Deus.

a') O fruto do caminhar segundo o Espírito

22Ao contrário, o fruto do Espírito é:

amor, alegria, paz,

longanimidade, benignidade, bondade,

fé, 23mansidão, autodomínio.

Contra tais coisas não existe lei.

A'. Conclusões parenéticas

24Ora, os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com suas paixões e seus desejos.

25Se vivemos segundo o Espírito, sigamos também caminhando segundo o

Espírito:

26Não sejamos cobiçosos de vanglória, provocando-nos uns aos outros e invejando-nos uns aos outros. (Pitta, 1992, p.139)

2. A unidade da perícope

A unidade da perícope Gl 5,16-26 vem de vários elementos como o vocabulário, as conexões da forma de conteúdo, dos paralelismos, dos quiasmos, das antíteses etc. Nós ressaltamos no momento apenas o vocabulário como chave de leitura importante do texto.

2. 1. O vocabulário

A unidade da perícope baseia-se no vocabulário que é de particular interesse, pois apresenta as palavras-chave para entender a perícope. Em particular encontramos as palavras Espírito e carne repetidas várias vezes:

 

- Espírito - 16; 17; 18; 22; 25; (x2)

- Carne - 16;17; 17b; 19; 24

- Lei - 18; 23

- Desejo - 16;  24

- Desejar - 17

- Caminhar - 16

- Conduzir - 18

- Seguir - 25

3. As antíteses, sua definição e seu uso no epistolário paulino

A antítese é a contraposição de dois pensamentos de variável extensão literária (Lausberg, 1987, p.209-218), ou ainda, a oposição de sentido entre dois termos ou duas proposições. Essa oposição pode ser aquela dos termos contraditórios ou aquela dos contrários, mas ocorre, sobretudo por meio desta (Nelis, 1948, p. 360-387)

O emprego da antítese era muito difundido tanto entre os gregos como entre os hebreus. Sabemos que a poesia hebraica se baseia muito no paralelismo, sobretudo, nos escritos a partir do Exílio, certamente influenciados pelo helenismo. Nos livros da Sabedoria, Provérbios ou Salmos, podemos dispor os versículos em dípticos e, com frequência, sob forma de paralelismo antitético. Da mesma maneira, nos escritos da Comunidade de Qumran aparecem antíteses (por exemplo: luz e trevas). O uso das antíteses entre os gregos era por razões puramente formais, para jogar com as palavras, combinando-as ou opondo-as, por motivo de harmonia. Os hebreus, ao contrário, amam à repetição. Assim, o paralelismo dos conceitos é de origem semítica, enquanto que os gregos, mais reservados no seu uso, limitam-se ao paralelismo de palavras.

Está no próprio temperamento de Paulo o uso das antíteses na exposição de seu discurso. A oposição de dois conceitos ajuda a manter a atenção dos ouvintes e dá-lhes a possibilidade de concluírem qual é a parte correta. Assim, encontramos no discurso de Paulo as antíteses: luz-trevas, Cristo-Adão, carne-Espírito, graça-pecado, fé-lei, liberdade-escravidão, etc. Na perícope de Gl 5,16-26 o gênero literário da antítese possui uma grande importância. Paulo quer persuadir os Gálatas sobre o valor do viver segundo o Espírito. Utilizando repetidamente antíteses na perícope, contrapõe carne e Espírito, catálogo dos vícios e virtudes, obras da carne e fruto do Espírito para na conclusão salientar as vantagens de caminhar segundo o Espírito. Notificamos que, na oposição entre o Espírito de Deus e carne, entende-se "carne" por toda humanidade pecadora. No mundo grego este tipo de antítese apresentava-se sob a forma de matéria - espírito, com sentido diverso, de acordo com o sistema que a abordava.

Uma vez que esta maneira de apresentação era muito usada no mundo helenista, nos escritos do judaísmo helênico bem como na literatura do Antigo Testamento, Paulo, sem dúvida, na condição de judeu e conhecedor da literatura de seu tempo, empregou este gênero literário. A noção “carne e Espírito” encontramos tanto no helenismo como no judaísmo, com significados diferentes daquele simplesmente literal. Sem dúvida que Paulo, como profundo conhecedor do Judaísmo, conheceu esta antítese carne - Espírito, revestindo-a com um significado próprio além daquele que essa já possuía. Paulo não procura identificar homem com carne ou com Espírito. Nem mesmo faz uma tentativa de colocar os dois juntos formando o homem (conf. dualismo corpo-alma em Platão). O homem em si mesmo é distinto da carne e do Espírito, isto é, pode viver segundo a carne ou viver segundo o Espírito. Mas para Paulo existe uma só forma de conduta cristã: caminhar segundo o Espírito (5,16).

Na perícope 5,16-26 encontramos diversos conceitos paulinos apresentados em forma antitética: carne, Espírito e lei. Observa-se com frequência nos escritos de Paulo que ele utiliza antíteses com a finalidade de enunciar seus princípios teológicos. Brunot muito bem o expressa: “É uma necessidade de sua inteligência, na abordagem de um problema, opor dois mundos, duas idéias, duas realidades. Espírito e carne apresentam-se com esta forma. Uma antítese chama outra, formando parte de um conjunto do pensamento e da apresentação do argumento”.

4. O catálogo dos vícios e virtudes

Catálogos de vícios e virtudes, encontramos tanto na ética pagã da antiguidade quanto no judaísmo, bem como no Novo Testamento. Já no século IV a. C. conheciam-se exortações semelhantes aos catálogos dos vícios e virtudes em documentos extra-bíblicos. Nas escolas estoicas (Sêneca e Epíteto) aparecem certas enunciações de caráter geral com referência a obrigações pessoais. Entretanto, o caráter geral dessas formulações leva-nos a pensar que a origem dos catálogos se aproxime do ambiente judeu-helenístico, vizinho à sinagoga. Fornecem-nos elementos para isso: Flávio Josefo em seu esquema tripartido de exortações a mulheres, crianças e escravos; Filão, em uma lista de atitudes com respeito aos pais, ao cuidado da mulher em casa, à educação dos filhos, etc.

(Textos que podem ser fontes destes catálogos de vícios e virtudes: Filão, Sacr 27 (elenco das virtudes); 32 (dos 146 vícios); nos escritos apocalípticos pré-cristãos: Test Ben 6,4; Tes Rub 3,2; ou na época neotestamentária, Ass Mos 7, da Comunidade de Qumran,1 QS 4,2-6, 9-11; 1 QS 3,20-21)

Na Bíblia, encontramos com muito maior frequência listas de pecados e vícios do que de virtudes. Essas listas certamente têm origem na legislação judaica e, em forma particular, no decálogo. Os catálogos neo-testamentários não apresentam um quadro homogêneo. Entretanto, na literatura paulina encontramos um determinado grupo de virtudes e de vícios que se repetem com frequência (No Novo Testamento encontramos oito grupos de virtudes (Cl 3,12; Ef 4,2; 5,9; Gl 5,22; 1 Tm 4,12; 6,11; 2 Pd 1,5-7) e 18 listas de vícios (Mc 7,21-22; Rm 1,29-32; Rm 13,13; 1 Cor 5,10-11; 1 Cor 6,9-10; 2 Cor 12,20-21; Gl 5,19-21; Ef 5,3-5; Cl 3,5.8-9; 1 Tm 1,9-10; 2 Tm 3,2-5; Tt 3,3; 1 Pd 2,1; 1 Pd 4,3 Ap 21,8; 22,15).

Em referência à lista de 5,19-23, tudo indica que, quanto à forma, ela se aproxima daquela dos moralistas populares do mundo helênico de seu tempo e, quanto ao conteúdo, se assemelha à lista de vícios e virtudes, encontrada na Bíblia. Em Dt 30,15-19 lemos: “Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade...”; Jr 21,8-9: “E a este povo dirás: ‘Assim disse Iahweh: Eis que vou colocar diante de vós o caminho da vida e o caminho da morte’...”; 1 Rs 18,21: “Elias, aproximando-se de todo o povo disse: Até quando claudicareis das duas pernas? Se Iahweh é Deus, segui-o; se é Baal, segui-o”; Ecl 15,17: “Diante dos homens está a vida e a morte, ser-te-á dado o que preferires”. Também na literatura extra - bíblica encontramos exemplos disso (1 QS 3,13 - 4,2).

Para concluir, podemos afirmar que Paulo, na exposição de sua argumentação ao interno da perícope Gl 5,16-26, utiliza o gênero literário das antíteses e da lista dos vícios e virtudes, destacando-se em forma saliente o contraste entre Espírito e carne. Esta maneira paulina de argumentar era muito comum em sua época, em particular na diatribe dos estoicos. O catálogo dos vícios e virtudes tem sua origem, provavelmente, na filosofia helênica e sofreu transformações ao passar ao judaísmo helênico. O texto de Gl 5,16-26 mostra que esta perícope tem seu “Sitz im Leben” na catequese da comunidade primitiva, comprovada no versículo 21. Segundo Vögtle, o versículo 21 apresenta o caráter de uma fórmula fixa, tanto quanto ao conteúdo como à maneira em que vem apresentada.

Referências:

Lausberg H., Elementi di retorica. Introduzione all'edizione italiana di Santini L. R. (La scienza della persuasione) (StLCL), tradução do alemão de Santini L. R., 9ª ed., Bologna 1987, 209-218. Lausberg apresenta um exaustivo estudo com respeito a esta figura literária, sua definição e um vasto número de exemplos vindos do mundo greco-romano. Apresenta uma divisão das antíteses em: a) antítese de palavra simples; b) antítese de grupo de palavras; c) antítese em frases.

Martinez Peque M., “Unidade de forma y contenido en Gal. 5,16-26”, EstB 45 (1984) 108

Nelis J., “Les antithèses littéraires dans les épitres de Saint Paulo”, NRTh 70(1948) 360-387.

Pitta A., Disposizione e messaggio della lettera ai Galati. Analisì retorico-letteraria (AnBib 131), Roma 1992, 139.