Este artigo pondera de modo geral uma pesquisa sobre a introdução e concepção do Pentateuco e como o povo antigo e nós hoje devemos entender as Escrituras como Palavra de Deus. O sentido e a consciência de que a memória (tradição oral) do povo é a Palavra de JHWH surgiram com os primeiros escritos bíblicos, o Pentateuco.

Para melhor podermos fazer uma leitura crítica da Escritura, convém antes salientar que os textos foram escritos muito tempo depois dos fatos, relendo o passado à luz dos acontecimentos do presente. Portanto, para nós hoje é preciso ter essa consciência quando vamos ler e estudar os textos bíblicos.

No intuito de entender a forma como a Bíblia foi escrita, percebemos que a primeira coisa que o escritor sagrado fez, foi ver os acontecimentos, esbarrando nos problemas, nas crises e dificuldades do povo. Mas também suas vitórias, suas crenças e esperança num Deus gerador da vida. Em contato com a realidade do povo, desperta-se no escritor a memória do projeto de JHWH, iluminando a caminhada do povo.

A Escritura nasce no momento em que uniram a memória à realidade daquilo que o povo vivia e acreditava. Para melhor entender esse processo, nós hoje, quando fazemos memória do passado, olhando o presente, lançamos o olhar para o projeto de Deus, assim como os escritores sagrados ao seu tempo.

A memória que o povo precisava fazer, era a do poder libertador de JHWH e do período em que seus antepassados viviam na escravidão do Egito. A memória que o povo cantou e contou, enquanto se manteve fiel à aliança com Javé. Esta que sempre iluminou a caminhada do povo nas situações mais difíceis, porque Deus fala agindo (�?xodo).

Em meio a tantos deuses mais �??sofisticados�?� de povos pagãos, o Deus �?nico se revelou como Deus dos escravos, das famílias, de Abraão, de Isaac e Jacó, isto é, o Deus dos pobres, migrantes, trabalhadores escravizados pela sociedade faraônica. Na estrutura piramidal da sociedade, o povo refaz a sua idéia sobre Deus e, quando descobre que Deus é um só e, que vê a aflição do povo, que ouve os seus gemidos, que conhece os seus sofrimentos, que denuncia a causa das opressões e age para ajudar na luta, pois quer a libertação total.

Mas a libertação não terminou com a saída do povo do Egito, porque sair do Egito era apenas um passo necessário para a libertação que, somente se completou quando estando livres da escravidão, serviram ao projeto de JHWH, ou seja, o de serem fiéis para sempre, de geração em geração.

Partindo dessa concepção e proposta, se faz necessário explicitar e direcionar uma síntese do Pentateuco com sua estrutura, a fim de alicerçar a fundamentação das Escrituras como Palavra de Deus.

A palavra �??Pentateuco�?� deriva da língua grega significando �??cinco livros�?�. O pergaminho a que se refere o Pentateuco são os cinco primeiros livros das Escrituras, salientado que na língua original, o hebraico, não davam nomes aos livros, sendo acrescidos posteriormente com a tradução para o grego (LXX), permanecendo os seguintes nomes: Gênesis (Bereshit), �?xodo (We`elleh Shemôt), Levítico (Wayyqra), Números (Bemidbar) e Deuteronômio (`Elleh hoddebarîm). Pelo povo era chamado somente de �??Livro de Moisés�?� ou �??Lei�?�, que em hebraico é traduzido por Torá.

Num sentido global o Pentateuco tem como pano de fundo um aspecto histórico-legislativo (história dos hebreus e suas leis), sendo que em cada um dos livros se tratará também esse binômio levando em consideração a concepção Teocrática (governo com base na força de Deus). No Gênesis, o autor que apresentar de um modo geral, Deus como �?nico e Criador de todas as coisas. No êxodo, começa a mostrar a organização do povo para se libertar da opressão no Egito, tendo Deus como ponto central. O Levítico trata diretamente das leis e da organização do culto, da liturgia. No livro dos Números termina a narração do �?xodo sobre a Teocracia e orienta a vida do povo no deserto. O Deuteronômio reflete sobre a presença do povo na terra prometida, narrando a aliança em Moab.

Sobre a autoria do Pentateuco, por muito tempo foi atribuída exclusivamente a Moisés, porém com o aprofundamento dos estudos, auxiliado pela metodologia histórico-crítica, a partir de 1700 d.C. começou a se questionar tal afirmação, apresentando várias argumentações. Richard Simon, Jean Astruc, Júlio Welhausem, entre outros, contribuíram na elaboração da pesquisa. Diante de várias hipóteses levantadas, a que mais é aceita pelos exegetas é de que o escrito do Pentateuco foi elaborado por quatro tradições: Javista (�??J�?�, de Javé, originado no sul), Eloísta (�??E�?�, de Eloîm, oriundo do norte), Deuteronomista (�??D�?�, de Deuteronômio, no norte, tempo dos profetas), Sacerdotal (�??P�?�, dos sacerdotes, no exílio babilônico). Neste contexto fica mais fácil a compreensão do Pentateuco com base nessas quatro fontes que originaram sua origem.

Contudo, não sendo a intenção deste estudo um aprofundamento maior, parte-se a uma segunda colocação que é o entendimento das Escrituras como a própria Palavra de Deus, pois essa discussão sobre as fontes não termina, bastando apenas ter conhecimento da existência da presente situação.

A dabar (Palavra) divina tem um sentido de falar, de acontecimento, de ação, pois Deus fala agindo. Desse modo a compreensão passa a fazer sentido na leitura do texto. Em Gn 1,1-3 havia trevas, Deus disse haja luz e, assim se fez. Deus age de modo misterioso. Na compreensão do povo não era possível se pronunciar o nome de JHWH, portanto o chamavam Senhor. Neste sentido, temos a Palavra de Deus como uma realidade de fé. Na dabar / logos nós podemos encontrar o ruah �?? vento, sopro, hálito de Deus. Não é o Espírito de Deus, mas é a obra da Palavra de Deus, sua �??ação�?�. Não se trata de uma ação unilateral, mas é a ação de Deus e a atuação humana juntas. Dessa atuação humana com a intervenção Divina é que vem a Torá. Também é entendido pela dabar a aliança, num sentido de empenho. A aliança neste sentido não é um pacto, mas o empenho de Deus e do seu povo. O processo pelo qual foi originado a Palavra de Deus parte do anúncio, passa pela transmissão e culmina na escrita da Palavra pela Memória ou tradição oral. Daí a Palavra de Deus aparece como verdade, revelação e norma a ser seguida.

Neste ínterim, nos deparamos com a necessária reflexão sobre o Espírito inspirador, fazendo-o em dois momentos: O momento da inspiração e o momento da expressão.

O momento da inspiração que, pode ser chamado hoje de chamamento: revelação, chamado, locução, visão e mandato, sendo esta a ação de Deus e, por parte do homem deve fazer uma experiência de Deus, ter consciência da missão, mudança da mente; O momento da expressão onde a pessoa percebe a ação transformadora de Deus, pois o escritor sagrado, o profeta é aquele que percebe a ação de Deus e traduz para o presente com a vontade e decisão de expressão, sendo necessário também ter o vocabulário adequado para transmitir realmente os desejos de Deus e a linguagem da fé, que move toda a inspiração, tendo presente a expressão e a compreensão do religioso.

Essa expressão de fé e revelação da Palavra está encarnada na história, leva em conta a situação do ser humano e, nesta experiência de Deus vemos uma intervenção de Deus que, provoca a fé para dar uma resposta.

Portanto, na tentativa de apresentar um desfecho final ao trabalho diríamos que, percebemos antes de tudo que a presença de JHWH, comunica seu Espírito a pessoas privilegiadas em favor de um grupo para a criação dos textos e também enriquecê-los. Em se tratando da Palavra inspirada, a verdade salvífica como valor primordial, se nos apresenta um problema, pois sabemos que a verdade é um conceito um tanto complexo, tendo diversos entendimentos e modos de compreensão em várias culturas e, onde há homem aí está a condição humana. Numa compreensão grega, a verdade tem um sentido especulativo, de busca pela essência das coisas, a realidade verdadeira é a natureza. Já os hebreus (Semitas) a compreendem como fidelidade, firmeza, segurança, estando relacionada e presente na comunidade. Para os hebreus, a verdade é JHWH, uma verdade essencialmente religiosa, que se realiza nos acontecimentos. Significa a correspondência entre a Palavra de Deus e acontecimento (realização).

BIBLIOGRAFIA
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