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O surgimento do livro de Eclesiastes é situado na segunda metade do século III aC, entre os anos de 250 a 190 aC , e muito provavelmente em Jerusalém. Com esta datação, o livro de Eclesiastes é alocado sob o tempo da dominação dos ptolomeus, herdeiros egípcios de uma parte do império grego de Alexandre, o grande. Estes dominadores gregos-egípcios disputavam com os selêucidas, outro grupo herdeiro do império grego, o controle sobre o �??corredor de passagem�?�, isto é a estreita faixa de terra que é a terra de Israel, Canaã ou Palestina.

Este é provavelmente o tempo �??debaixo do sol�?� (Ec 1,3), um tempo que parece enigmático como o andar dos ventos (Ec 1,4-11) e pouco transparente em sua estrutura de poder. �? um tempo de muita dinâmica econômico-comercial. Havia um ritmo intenso no trabalho e na economia. Isso fazia fugir e desaparecer o tempo presente. O muito trabalho acaba negando a plenitude de vida. A na �??ralação�?? do trabalho faz desaparecer uma vida que possa ser vivida mais intensamente. Neste contexto já se aplicava bem o provérbios popular que diz: �??pobre é com disco de embreagem; quanto mais trabalha, mas liso fica�?�.

A pergunta programática em Ec 1,3 �??que proveito tem o homem de todo o seu trabalho com que se afadiga debaixo do sol?�?� recebe por várias vezes a resposta temática negativa: �??tudo é em vão (hebel) e um correr atrás do vento�?� (2,11.17). Para Coélet, que realiza uma percepção aguçada da realidade do mundo da economia e do trabalho no tempo da dominação grega sobre a Palestina a partir do Egito, a máxima sapiencial tradicional de que em todo trabalho há proveito (Pv 14,23) fica sem sentido. Se a gente lê um texto como Jó 28,3-4.9-11, que é expressão da mesma crise sapiencial, qualquer empreendedorismo humano refreado e até entendido negativamente. O efetivo resultado da ação humana sob este regime �??debaixo do sol�??, entendido como um mundo duradouro, um determinismo social, é uma eterna fugacidade no viver e no ter; é hebel, porcaria, uma inversão geral. Coélet percebe a intensa inserção dos camponeses e dos clãs judaicos da época na engrenagem do trabalho fatigante para atender os interesses ptolomaicos e da elite local (Ec 4,1). Neste sentido, Eclesiastes, apesar de sua percepção negativa da realidade, é quase como um dos profetas clássicos de Israel. Para a perspectiva de Eclesiastes se poderia muito bem aplicar um provérbio moderno: �??pobre é como disco de embreagem; quanto mais trabalha, mais liso fica�?�. Para Coélet, tal tipo de trabalho é hebel, gera uma �??lisura�?? geral no sujeito!

A pergunta fundamental de Eclesiastes é por aquilo que efetivamente resta para o ser humano no trabalho fatigante �??debaixo do sol�??. Na primeira parte do livro (1,4-3,22), nega-se que o verdadeiro proveito, o bem-estar e o cuidado da vida, estejam na busca da sabedoria, no acúmulo de bens materiais, no trabalho e na dominação. O autor ou a autora do livro se apresenta como sendo Salomão, o patrono da sabedoria no antigo Israel. Isso, porém, é uma ficção para um tom mais polêmico ao texto. Este �??pseudo-salomão�?? é ideologicamente desmontado no avanço das reflexões. O conceito geral hebel se aplica a cada um dos âmbitos assinalados, isto é, o trabalho, as riquezas e a própria sabedoria. Vale lembrar que para a sabedoria clássica do antigo Israel, o sucesso ou o fracasso na vida de uma pessoa estava condicionado pelo seu agir. Se alguém era pobre e sofredor, isso se devia a algum tipo de erro ou pecado em sua vida. Na verdade, esse pressuposto da chamada �??retribuição mecânica�?? ou �??teologia da retribuição�?? já foi questionado no livro de Jó.

Na segunda parte de Eclesiastes (4,1-6,9), a pergunta programática pelo verdadeiro proveito é repassada na análise de outros valores tradicionais: vida de trabalho sem efetivas relações humanas de amizade e companheirismo (4,1-16), dedicação à religião (5,1-7), novamente as riquezas materiais (5,8-6,0). Também tudo isso está sob o signo de hebel. Na terceira parte (6,10-8,17), os valores da sabedoria e sua comparação com a estultice são analisados; também a relação com as autoridades, bem como as desigualdades na vida são passadas em revista. Disso resulta que é melhor levar uma vida em moderação, nem demais nem de menos, pois o futuro é sempre uma incógnita. Na quarta parte (9,1-12,7) predomina um tom mais otimista. Permanece a percepção básica de que a vida tende para a fugacidade, mas já desponta com mais ênfase um convite à alegria e à ação eficaz para o bem-estar na vida.

Originalmente publicado em:
REIMER, Haroldo (org.). Eclesiastes. A sabedoria do viver e conviver. São Leopoldo: Cebi, 2006, p. 20- 21.