Essa sua pergunta está intimamente ligada ao tema teológico da justificação, um tema polêmico na história do debate teológico entre católicos e protestantes (), debate que ajudou muito no progresso teológico e, ultimamente, também no caminho ecumênico (veja a declaração conjunta de católicos e luteranos).

Por ser um tema tão complexo, não é possível dar uma resposta em 10 linhas. Por isso convido a ler com atenção os parágrafos que seguem, nos quais tento traçar algumas pistas de reflexão, que lhe possam ajudar a entender o assunto.

 

Pecado, justificação e fé em Paulo

Essa questão é refletida sobretudo a partir dos escritos de Paulo, particularmente baseando-se sobre a Carta aos Romanos e a Carta aos Gálatas.

Paulo, através de sua experiência de vida, dá-se conta que Cristo está no centro de tudo e que Ele é o mediador entre o homem e Deus e que é Ele que consegue conduzir de verdade tudo ao Pai. O resto, como o seu ser judeu e a observância da Lei mosaica, não é um ponto de partida privilegiado, por que não é suficiente, sozinho, para dar a salvação.

Ao mesmo, Paulo reflete sobre a condição humana, sobre o pecado que aflige a humanidade. E faz uma conclusão bastante dramática: Não existe nenhuma discriminação: todos pecaram e estão privados da glória de Deus (Romanos 3,22-23).

Tendo esclarecido a situação de “toda a humanidade”, que com o pecado se colocou em uma estrada sem saída, reflete sobre a ação divina realizada em Cristo. A humanidade pecadora é o alvo do projeto de salvação de Deus. Visto que Deus é “justo”, isto é, “fiel a si mesmo”, àquilo que Ele é, quer reconciliar consigo toda a humanidade. Faz isso gratuitamente, através de Cristo. Essa é a sua justiça.

O ser humano, apesar dessa ação divina, é dominado pelo pecado. A fé em Jesus tem o poder de transformar essa situação, porque incendia o processo da ação “justificante” do Espírito. A fé em Cristo é a única que pode aplacar a inclinação humana à transgressão, que é como uma “auto-afirmação”, quase um tipo de independência do indivíduo de Deus e da sociedade, uma fuga da necessidade de partilhar a vida com os outros e com a sua liberdade.

É nesse sentido que Paulo em Romanos 7 fala do pecado, quase personificando-o. Como diz Barbaglio, o pecado é “a potência personificada do egocentrismo que se impõe aos seres humanos guiando-os à busca obsessiva de si mesmos e à negação prática de Deus, pelo qual o desejo intrínseco da pessoa verso o bem fica diminuído, pois as escolhas e os comportamentos são, de fato, negativos”.

Paulo exprime essa situação descrevendo uma situação dramática, em Romanos 7,21-25: Assim eu sei que o que acontece comigo é isto: quando quero fazer o que é bom, só consigo fazer o que é mau. Dentro de mim eu sei que gosto da lei de Deus. Mas vejo uma lei diferente agindo naquilo que faço, uma lei que luta contra aquela que a minha mente aprova. Ela me torna prisioneiro da lei do pecado que age no meu corpo.

Como sou infeliz! Quem me livrará deste corpo que me leva para a morte? Que Deus seja louvado, pois ele fará isso por meio do nosso Senhor Jesus Cristo! Portanto, esta é a minha situação: no meu pensamento eu sirvo à lei de Deus, mas na prática sirvo à lei do pecado.

 

Justificados em Cristo

A única saída para essa situação dramática é a justificação pela fé em Cristo. Pois, no seu conhecimento de Cristo, Paulo descobriu que Jesus é o único que pode verdadeiramente realizar aquilo que a Lei não pode, isto é, tornar capaz de não pecar, de observar toda a Lei, pois em Jesus e no Batismo tem o dom do Espírito, que ESCREVE a lei nos corações come em cima de uma tábua de carne, como se os orações se tornassem a Tábuas de Moisés

Não é fácil entender o conceito de justificação (leia esse excelente artigo). Ele está intimamente ligado à “Justiça”. E quando Paulo fala de “justiça” e “justificação” retoma uma ideia presente no Antigo Testamento, exprimida com o vocábulo hebraico “tsedaqah”. É um termo do campo forense, que denota “declarar justo”, “absolver”, em contraposição a “condenar”. Ser “justificado” significa, por isso, obter uma sentença de absolvição. Muitas vezes, no Antigo Testamento encontramos a Deus lidando com o seu povo, em um tipo de relação processual, principalmente quando o pecado do povo quebra a Aliança com ele.

Na Bíblia o termo “justiça” exprime, portanto, uma relação, aquela entre uma medida e uma realidade pesada, que precisar alcançar o empate. Por exemplo: peço três quilos de farinha (medida); quando forem dados todos os quilos pedidos, então terei um “empate”. Posso, então, dizer que “o peso é justo”, pois o que obtive é empatado com o que pedi.

No caso de Deus, o “empate” é o seu agir conforme si mesmo, com aquilo que Ele é. Se Ele é aquele que salva, então para ser fiel a si mesmo, a sua justiça será a salvação. Deus é justo porque age conforme si mesmo. Também Deus deu para si mesmo uma lei: é a Aliança com o seu povo e a fidelidade a esta aliança se reflete sobre todo o seu agir.

O ser humano é “justo” quando se torna como Deus o criou, como o pensou, sonhou e inventou. E Deus Justifica o ser humano, através de Cristo, empatando a situação que se criara com o pecado.

Para Paulo a justificação, dom de Cristo, é incalculável na medida e na beleza. É, de verdade, a criação renovada, a possibilidade dada à humanidade de realizar o sonho de Deus de ser “a imagem e semelhança” de Deus e de morar no mundo junto com Ele, como era no princípio.

A Justificação começa com o batismo, com a remissão dos pecados, a libertação da escravidão da lei do pecado. No batismo, primeiro de tudo, Deus “desencalha” a pessoa do banhado no qual se atolou. Em segundo lugar, tendo iniciado a estar em contínuo contato vital com Cristo, a pessoa é inundada pelo Espírito que a renova constantemente, desde que viva escutando-o e em sintonia com ele: “se vivemos do Espírito, caminhamos também segundo o Espírito (Gálatas 5,25).

No inevitável confronto nem sempre vitorioso com o pecado, a esperança não deve nunca cessar de ser o aspecto distintivo da vida cristã. A fidelidade que Cristo promete é come uma garantia em vista da herança futura que nos espera.

 

Em síntese

A justificação efetuada por Cristo é uma garantia que ninguém tira, um dado de fato do qual toda a humanidade goza. Todavia, o pecado continua existindo, mas deixa de ser o centro de todas as obsessões do cristão e se torna um obstáculo “lateral” na estrada (mesmo se sempre importante, não marginal), que compromete a realização da pessoa e da felicidade a qual Deus nos chama. Um obstáculo que acompanha sempre a sua vida, mas em relação ao qual pode experimentar sempre a força positiva de Deus, que perdoa e “justifica”. Portanto, na vida do cristão não é o pecado e nem a transgressão o centro da atenção. O olhar de todo cristão se deve concentrar sobre a “medida” que Deus lhe deu, sobre o que é chamado a ser e que já é. Está dirigido para frente e não oprimido pelo peso do passado.