Com certeza a Bíblia, sobretudo em relação aos livros do Antigo Testamento, não nasceu como literatura, mas como história contada, de geração em geração. Cada história teve uma origem diferente, baseando-se em um fato verídico ou em uma interpretação da situação humana, como a criação. Às vezes uma mesma história era contada em duas ou três maneiras diferentes, dependendo da região geográfica ou até mesmo da tribo/família. Com o passsar do tempo (às vezes até séculos) as narrações podem ter sido enriquecidas com novos elementos e podem até ter resultado em narrações diversas. É assim, por exemplo, que temos duas histórias da criação do ser humano, uma em Gênesis 1 e a outra a partir de Gênesis 2,4b e diversas outras ‘incongruências’ no texto bíblico.

Em algum momento histórico alguém decidiu colocar por escrito tudo isso, às vezes reunindo tradições diferentes, acrescentando as próprias ideias para dar homogeneidade ao texto. Provavelmente, sobretudo em relação aos livros que contam a história, na maior parte dos casos, o patrocínio da composição escrita das tradições tenha vindo de ambientes do poder, do governo político. Uma vez colocado por escrito, sabemos que o texto teve uma transmissão muito linear. Uma prova disso é o fato da existência de poucas diferenças entre o texto do Códice de Leningrado e os manuscritos de mil anos antes, encontrados em Qumran.

Portanto, respondendo de modo mais objetivo, em certo sentido, o texto bíblico sofreu um processo de criação, durante o período da transmissão oral. Certamente esse processo produziu acréscimos à narração, mas nada parecido com os erros de compreensão típicos da brincadeira “telefone sem fio”. Trata-se antes de um processo vital, dinâmico, interpretativo, expressão da vida das pessoas que transmitiam os fatos. Ao mesmo tempo é importante sublinhar que a transmissão oral  não durou sempre. Com o texto escrito, a Palavra, fisicamente falando, foi definida.

A transformação do texto, na verdade, está acontecendo ainda hoje, à medida que é lido. Não é verdade que diante de um livro antigo nos perguntamos qual era a mensagem que o autor queria nos transmitir? A nossa interpretação “desvela” a mensagem do autor, revestindo o texto com as nossas palavras. Ler, no fundo, é modificar o texto: é tomar posse dele, fazendo com que diga algo para nós hoje, que transforme a nossa vida. Quando se fala de Bíblia, essa ‘modificação’ é baseada na fé.

Finalmente sublinho um último aspecto. Nós hoje não somos uma sociedade de tradição oral, como era a de Israel antigamente. Para nós, que vivemos em um mundo de palavras escritas, entender uma sociedade que conserva seus próprios valores de forma oral não é simples. Parece quase impossível. Tudo precisa ser colocado por escrito, se não em um livro, ao menos no próprio perfil de alguma rede social.