No último número da revista francesa “Le Monde des Religions” foi publicada uma excelente intrevista realizada por Florence Quentin com Jean-Daniel Kaestli, estudioso experto em apócrifos, sobre os livros extra-bíblicos que suscitam tanta curiosidade. Para ajudar nossos leitores na compreensão desse tema, julguei ser oportuno oferecer uma tradução desse texto aqui no site. O texto original dessa tradução pode ser lido aqui: www.recherche-plurielle.net/

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"Apócrifos": o que  significa este termo raramente usado hoje?

É verdade, o termo raramente é utilizado fora dos círculos da igreja e esferas de crítica literária. Etimologicamente, a palavra deriva do adjetivo grego ‘apokruphos‘que significa "escondido", "secreto". Em alguns textos do início do cristianismo, por exemplo, no Evangelho de Tomé, tem um significado positivo e enfatiza a dimensão misteriosa da revelação divina. Mas logo em seguida, a partir do século 3 dC, ele é carregado com uma conotação negativa e é usado para se referir a livros "que a Igreja não reconhece, não aceita no cânon bíblico" (definição de Petit Robert). Além disso, esses livros mantidos longe do grupo de livros das escrituras foram muitas vezes considerados como mentiras, doutrinariamente suspeitos, escrito e lido por héritiques. É neste sentido negativo - "não autêntico", "origem suspeita" – que o termo é usado pelos historiadores da literatura: uma obra falsamente atribuída a um autor é descrita como “apócrifo”.

A nossa abordagem, aquela da equipe de pesquisadores que constituem  a "Associação para o Estudo da literatura apócrifa cristã" (AELAC), quer romper com a imagem negativa associada ao uso atual da palavra. Aos nossos olhos, "apócrifos" é um termo neutro, que não implica, a priori, o julgamento de qualquer valor. Chamamos de "literatura apócrifa cristã" uma ampla gama de textos, de origem cristã, cujo foco é personagens que aparecem nos livros da Bíblia, ou que se relacionam com os eventos narrados ou implícitos nestes livros. Os textos são de grande variedade e são diferentes em relação à  data de composição, local de origem, crenças que eles refletem, à recepção ou rejeição que tiveram no meio das igrejas cristãs.

Por que os apócrifos suscitam tanto a curiosidade de nossos contemporâneos?

É verdade, a literatura apócrifa desperta grande interesse hoje. Isto é devido em grande parte ao seu carácter misterioso. Muitos de nossos contemporâneos, em busca das verdades espirituais e novas experiências, insatisfeitos com a oferta de igrejas tradicionais,  são atraídos por esses textos marginais e pouco conhecidos. Isso explica o sucesso do Evangelho de Tomé, em alguns círculos: esta coleção de ditos de Jesus, descoberto em 1947, é, por vezes, elevada à quinta Evangelho, ou até mesmo considerado como a única fonte do autêntico ensinamento do Mestre. Esta busca de uma nova sabedoria, esta atração para o pensamento esotérico e gnóstico deve ser analisado em profundidade por igrejas tradicionais. O estudo sério dos antigos apócrifos que alimentam correntes espiritualistas contemporâneos é uma parte importante desse esforço de clarificação.

Fala-se de evangelhos secretos, palavras escondidas de Jesus, verdades escondidas pelas igrejas. O que existe realmente?

Em relação a isso, devemos distinguir dois aspectos. Por um lado, você deve saber que alguns apócrifo se apresentam como textos secretos, como revelações feitas a um apóstolo privilegiado e confiada a um seleto grupo de beneficiários. Este é o caso, por exemplo, vários escritos descobertos em Nag Hammadi, no Alto Egito, cujo título indica claramente o seu carácter secreto, "apócrifo" no seu primeiro sentido: Apocryphon de João, Epístola apócrifa de Tiago, "palavras secretas (apokruphoi) que Jesus O Vivvente disse e que escreveu Dídimo Judas Tomé "(título original do Evangelho de Tomé). Às vezes, como em “Questões de Bartolomeu”, o próprio livro contém uma instrução que reserva a leitura da obra apenas aos cristãos que são "dignos". Essa vontade de limitar a difusão de certos apócrifos explica, em parte, a sua quase extinção ou conservação  em um número muito limitado de cópias.

Por outro lado, devemos reconhecer que as condenações impostas pelas autoridades da Igreja, bispos e teólogos, também desempenharam um papel importante na "ocultação" da literatura apócrifa. Muitos documentos eclesiásticos da Antiguidade e da Idade Média trazem listas de livros a serem rejeitados como "apócrifos" e denunciam a sua origem herética. Mas essa rejeição não deve ser exagerada. Por um lado, os pronunciamentos oficiais não impediram vários textos condenados a sobreviverem de forma escondida ou mesmo abertamente, através da religião popular ou em ambientes monásticos. Por outro lado, deve notar-se que as condenações existentes no passado já não estão mais em vigor. Pensar, como fazem alguns, que a Igreja de hoje ainda tenta abafar a voz dos apócrifos, para esconder seu conteúdo subversivo, é pura fantasia, assim como também é pura fantasia hipotizar uma "conspiração do Vaticano" contra a publicação dos manuscritos do Mar Morto.

O estudo dos apócrifos permite compreender melhor o Novo Testamento, o ambiente no qual nasceu e a história das origens do cristianismo?

Sim, o estudo dos apócrifos e sua recepção na Igreja primitiva é uma tarefa essencial para quer ter uma compreensão da formação do Novo Testamento, do processo histórico de delimitação do "cânone" de 27 livros. Essa delimitação não foi feita de uma só vez, não foi decidido por uma autoridade central, por um Concílio de bispos. Pelo contrário, é o resultado de uma maturação prolongada, um diálogo epistolar entre os líderes das igrejas locais. Certos livros apócrifos conviveram de perto e tiveram praticamente uma vida comum em certas igrejas locais. Assim aconteceu que o Apocalipse de Pedro tivesse a mesma autoridade que o Apocalipse de João, os Atos de Paulo são mencionados da mesma forma que os Atos dos Apóstolos, ou a Epístola aos Laodiceus é colocada entre as cartas de Paulo em vários manuscritos da Bíblia Latina.

Os apócrifos também podem contribuir para a compreensão do Novo Testamento, lá onde eles usam os mesmos métodos de interpretação que os autores bíblicos e onde procuram lançar luz sobre passagens obscuras de narrativas canônicas. Por exemplo, a história da paixão narrada no Evangelho de Pedro, assim como a dos Evangelhos canônicos, se apoia em textos do Antigo Testamento, que anunciam aquilo que Jesus realiza com a sua morte e ressurreição. A descida de Cristo ao inferno narrado pelo Evangelho de Bartolomeu é baseada em uma exegese narrativa das palavras enigmáticas de Jesus a Natanael: "Voce verá o céu aberto e os anjos de Deus subinhdo e descendo sobre o Filho do Homem” (João 1,51). Encontramos, portanto, em certos apocrifos, o equivalente cristão do “Midrash” judeu, da explicação do texto bíblico por meio de uma narração.

Podemos considerar os apócrifos como uma expressão da diversidade cultural e religiosa do cristianismo? E se assim for, podemos tirar lições para a nossa vida de hoje?

A diversidade dos apócrifos, na verdade, reflete a diversidade de problemas e desafios aos quais o  cristianismo foi desafiado desde o início e ao longo de sua história. Os exemplos são numerosos: a necessidade de definir a identidade cristã em relação ao judaísmo e observâncias da lei mosaica, que se vê nas na obra “Reconhecimento” do Pseudo-Clemente;  vontade de comparar os valores da religião com os da filosofia grego-romana, particularmente evidente nos Atos de André e nos Atos de João; necessidade de estabelecer a legitimidade e originalidade da Igreja local ou nacional, como no caso de Doutrina de Adaï e das cartas entre Jesus e Abgar, primeiro rei cristão do principado de Edessa, nas fronteiras entreo Império Romano e o Império Persiano.

Eu diria, para concluir, que o conhecimento dos textos apócrifos nos abre ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso. Ele ajuda-nos a descobrir a extraordinária riqueza das igrejas cristãs através do tempo e do espaço. Nós, dentro do nosso grupo de pesquisadores, regularmente experimentamos isso: a descoberta dos textos apócrifos conservados em siríaco, armênio, árabe, georgiano ou em etíope  requer uma mudança de atitute em relação à tradicional herança do cristianimso grego e latino. Aprendemos a conhecer a tradição das igrejas periféricas, muitas vezes mal conhecidas, mas rica de fé e história veneráveis.