Uma observação muito interessante. Há, nas diferentes versões da Bíblia em circulação, vários outros conflitos como esse que você indica. Dessa vez, nos concentramos nesse texto para explicar um pouco sobre a questão da crítica textual, que é o campo inerente a este problema.

Apocalipse 22
Antes de entrar na questão científica, vamos fazer uma premissa, baseados na parte da sua pergunta onde você usa um texto bíblico para argumentar que nada pode ser tirado ou acrescentado ao Texto Sagrado. A passagem citata por você (Apocalipse 22,18b-19) do último livro bíblico diz:

A todo o que ouve as palavras da profecia deste livro, eu delcaro: Se alguém lhes fizer algum acréscimo, Deus lhe acrescentará as paragas descitas neste livro. E se alguém tirar algo das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará também a sua parte da árvore da Vida e da Cidade santa, que estão descritas neste livro.

A "ameaça" é referida exclusivamente ao livro do Apocalipse e parece que se trata de um modo que o autor usa para proteger a integridade da profecia contra qualquer falsificação. Há outros exemplos parecidos na Bíblia que usam essa metodologia, como Deuteronômio 4,2 ou Provérbios 30,6.

Invés, quando você encontra alguma incoerência ou diferença entre versões das bíblias em português a questão que jaz por traz disso não há relação com o fato de acrescentar ou tirar algo do texto do autor. Trata-se, às vezes, de estilo linguístico da tradução ou, em outros casos, de um problema de crítica textual. Em Romanos 8,1 temos uma questão de crítica textual.

O texto de Romanos 8,1
Para mostrar o problema aos nossos leitores, transcrevo aqui 4 versões diferentes do texto em questão.

  1. Almeira Revista e Corrigida: Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito.
  2. Almeira Revista e Atualizada: Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.
  3. Bíblia de Jerusalém: Portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus.
  4. Edição Pastoral: Agora, porém, já não existe nenhuma condenação para aqueles que estão em Jesus Cristo. 


A primeira coisa que observamos é que somente na primeira versão (ARC) tem um texto mais lungo, enquanto que as outras 3 apresentam um texto que omite, como você já disse na pergunta, a parte "que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito".

Embora a modernidade não necessariamente seja um parâmetro de referência, as 3 bíblias que concordam entre si são frutos mais recentes do trabalho dos biblistas, enquanto que a edição Almeida Revista e Corrigida é de 1969. Sem entrar no mérito de cada versão, posso garantir que o texto das 3 bíblias que concordam entre si não se é uma tentativa de eliminação deliberada de uma frase, mas o resultado tirado da conclusão de estudos feitos em busca do texto original do autor sagrado.

Crítica Textual
A Crítica Textual Bíblica é uma matéria que tenta descobrir, com métodos científicos, o provável texto original da Bíblia. Já tivemos oportunidade de tratar dessa ciência aqui no site, através de um exemplo concreto (veja aqui). Parte-se do princípio que a Bíblia é um texto antigo, do qual não conservamos o original, tal como saiu da "caneta" do autor. É um texto que passou por um processo de transmissão, sendo copiado por diferentes mãos. Esse processo produziu diversos erros, que com o tempo foram descobertos e resolvidos. Esses erros podem ter sido voluntários ou inconscientes. De fato, antigamente não existiam nem computador nem impressoras que evitam erros. O modo de escrever os livros e copiá-los era através da escritura manual. Quantas vezes, escrevendo, cometemos erros tipográficos, trocando letras, pulando linhas, etc.? Esses são erros involuntários. Apesar da falta de vontade em cometer o erro, uma cópia posterior pode ter conservado esse erro e, assim, tê-lo transmitido até nós. Outra questão que pode ter acontecido durante o processo de transmissão até nós do texto bíblico são os acréscimos por questões teológicas. Um escriba, um copista, pode ter lido uma frase e não ter entendido o significado e então, com suas próprias palavras, pode ter querido esclarecer aquela frase, acresentando palavras suas. Embora essas palavras tenham sido, em seguida, integradas aos textos que se copiavam, elas não fazem parte do texto original do autor considerado inspirado. Por isso, hoje, é necessário tirá-las do texto bíblico. Praticamente foi isso que aconteceu com a frase citada por você, em Romanos 8,1.

Descobrir qual são as palavras que foram acrescentadas ou omitidas na Bíblia é a tarefa dos críticos textuais. O trabalho deles começa quando se descobre alguma discrepância entre manuscritos bíblicos. Nós temos, nos museus e bibliotecas espalhados pelo mundo, muitos manuscritos bíblicos. Eles contêm pedaços do texto Bíblico. Se um manuscrito não concorda com o outro, é necessário descobrir qual dos dois é o original. Obviamente essa 'escolha' não é feita conforme o humor de alguém, mas é baseado em critérios científicos muito sérios e fundamentados.

Entre os inúmeros casos existentes se encontra Romanos 8,1. Nós não podemos ver e comparar todos os manuscritos espalhados pelo mundo afora, mas existem instrumentos que recolhem tudo isso e nos disponibilizam as informações necessárias, mostrando porque se fez a escolha de excluir ou acrescentar um texto. Em relação ao Novo Testamento, ao texto grego, o instrumento clássico é o Novum Testamentum Graece de Nestle-Aland. Esse livro, que nós biblistas temos em mãos, mostra cada versículo com as variáveis existentes nos manuscritos. Nestle e Aland, em base a certos critérios estabelecidos pelas ciências, fazem uma escolha do texto considerado original, mas mostram também quais são as outras leituras existentes nos manuscritos. Os tradutores das nossas versões da Bíblia em português, quando traduzem do grego, usam esse instrumento e, normalmente, seguem as indicações desses expertos alemães.

Nestle-Aland diz que em Romanos 8,1 alguns manuscritos acrescentam "que não andam segundo a carne" e outros ainda "mas segundo o espírito", mas os manuscritos considerados mais originais e importantes ignoram essa frase. Por isso a frase em questão é julgada como um acréscimo e, hoje em dia, não vem mais usada nas versões.

A frase "que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito", na verdade, em relação à mensagem do texto, não acrescenta muito conteúdo. Simplesmente específica que aqueles que estão com Jesus são pessoas que seguem o Espírito e não a carne. Dificuldades muito mais sérias proporcionam aqueles textos que, junto com as variações de leituras dos manuscritos, trazem problemas de compreensão que se transformam em questões teológicas. Mas, de qualquer forma, esse exemplo que você citou nos ajuda a entrar nesse mundo do texto bíblico que provavelmente poucos conhecem, mas que, para os biblistas, é muito importante.