Chão histórico do livro de Oseias

A data provável da profecia de Oseias é 755 a 721 a.E.C. Trata-se do final do reino do Norte, últimos anos do reinado de Jeroboão II até o reinado de Oseias, filho de Ela. No primeiro capítulo de Oseias está uma forte crítica contra a dinastia de Jeú. Os capítulos 2 e 3 refletem certa prosperidade de produção e tranqüilidade política, marcas do reinado de Jeroboão II. Do capítulo 5 em diante, estão reflexos da crise que se instaura em Israel, devido a pressões externas vindas do Império Assírio. Com a chamada guerra siro-efraimita e a subjugação de parte do território por Teglat-Falasar III (rei da Assíria), por volta de 733 a.E.C., aumentam significativamente na palestina o clima de violência e insegurança interna. Os capítulos finais de Oseias testemunham os acontecimentos em torno do ano 724 a.E.C., data do cerco à cidade de Samaria e da destruição do reino do Norte, com o conseqüente exílio do povo para a Assíria, potência imperialista da época.

Chaves que destrancam as profecias de Oseias

A profecia atribuída a Oseias é composta de catorze capítulos, organizados em duas grandes unidades: 1a) Os 1-4; 2a) Os 5-14. O capítulo 4 parece ser o grande elo das duas partes, pois faz uma ligação entre o conteúdo de Os 1-3 e o de Os 5-14.

Para entendermos bem a profecia de Oseias, precisamos levar em consideração as implicações dos gêneros literários presentes no texto. Precisamos também não cair na armadilha da interpretação simplesmente alegórica, com base em polarizações como Javé-Israel, marido-mulher e fidelidade-infidelidade. Isso reduz tremendamente a realidade gritante que lateja por trás do texto. Por isso para compreender bem as profecias de Oseias, é preciso levar no coração as angústias das pessoas marginalizadas e excluídas e, particularmente, o clamor das mulheres, que resistem, apesar de tudo, frente à violência patriarcal e outras agressões dos mais diversos matizes.

Os primeiros quatro capítulos focalizam o âmbito da casa e suas relações peculiares. Oseias, nos capítulos de 5 a 14, amplia o foco, detendo-se no mo(vi)mento promovido em várias instâncias do Estado monárquico (a corte do rei, seu exército, sacerdotes  e funcionários). Isso nos mostra que a profecia de Oseias vai do miúdo da vida para o macro, do cotidiano para as questões globais, mas revelando a interdependência e o entrelaçamento das várias dimensões da vida humana e social. Oseias denuncia o poder opressor localizado nas grandes instituições, mas também desvenda a microfísica do poder: todas as relações interpessoais (sociais, etc) são permeadas de relações de poder. O poder não está localizado somente nas grandes instituições, mas está presente nas micro-relações. Estão permeadas de poder as relações homem-mulher, adulto-criança, professora-estudante, governante-governados, branco-negro, sadio-doente...

O quarto capítulo de Oseias versa sobre o cotidiano da colheita, com uma veemente crítica aos sacerdotes, já que eles representavam o Estado monárquico. A idolatria justificava religiosamente as estruturas e relações de opressão e exploração. A isso Oseias chamava de prostituição e de adultério. Eram freqüentes em Israel e afetavam as relações entre mulheres e homens dentro de casa. Em Os 4,1-19 temos uma profecia que denuncia a macro-opressão realizada pelos “sacerdotes”, e outra que põe o dedo na ferida da micro-opressão que acontece nas relações interpessoais, particularmente entre homem e mulher, entre adultos e crianças. O miúdo da vida (o cotidiano) e o macro da vida são as duas pernas presentes na profecia de Oseias. Elas se entrecruzam no texto.

Em particular, a profecia de Oseias revela para as pessoas o que significa viver sob as guerras e alianças de Israel com o Império Assírio (cf. Os 5,13; 7,11; 8,9), em um ir e vir sem rumo que foi corroendo as forças da nação até chegar ao seu final (cf. Os 5,12; 7,9; 8,8). Isso sem falar da violência que rasgou ventres de mulheres grávidas (cf. Os 14,1) e tirou a vida de crianças de peito (cf. Os 9,11-14).

A biblista Tânia Mara, com fina sensibilidade e intuição feminista, nos diz que em Oseias “movimentos de corpos prostituídos abrem a profecia... movimentos de corpos em resistência atravessam a profecia... movimentos de corpos transgressores desafiam a leitura da profecia e proclamam novidades!”.

Prostituição, em Oseias, não é uma questão sexual-moral, mas uma questão de idolatria. Oseias não faz censura moral e muito menos é moralista. Não se refere a pessoas individualmente prostituídas, mas ao “país que foi prostituído”.

O livro de Oseias não qualifica Gomer como prostituta. Afirma, ao contrário, que a “nação se prostituiu” (Os 1,2). Assim, a ênfase recai sobre a nação, e não sobre Gomer. Muitas outras mulheres se encontravam em situação parecida. Oseias 4,14 menciona que as filhas se prostituíam e as noras praticavam adultério nos tempos da colheita. Mas faz bem precisar que a prostituição em Oseias é “um dado de realidade que atinge o corpo de homens, mulheres, crianças e lhes expropria a vida. Mais do que isto, é fundamental identificar que as crescentes críticas ao longo da profecia dirigem-se não às mulheres, mas aos sacerdotes, aos reis e aos príncipes (cf. Os 5,1-2.4...)” .

Segundo a profecia de Oseias, os sacerdotes são os grandes culpados pela violência reinante. O povo percebe que os sacerdotes haviam se transformado em assassinos e se comportavam como bandidos em emboscada (Os 5,9). O povo percebe a ilusão que é acreditar no Império Assírio como caminho de salvação (Os 14,4). O povo cai na real e consegue ver que os reis e príncipes são insensatos, mentirosos e se matam por disputas internas (cf. Os 7,1-7) e por disputas políticas externas (cf. Os 5,1-15; 7,8-16; 8,8-14; 10,6-15). Diante dessa dramática máfia religiosa e política, o povo, passando por um processo sofrido de conversão, conclui, voltando-se para o Deus Javé: “é em Ti que o órfão encontra misericórdia” (Os 14,4). A hipocrisia e o cinismo dos sacerdotes na condução do culto fazem o povo descobrir que o caminho para a libertação não passa pelos sacrifícios, mas pela misericórdia. A conclusão é: “Misericórdia, sim; sacrifício, não!” (Os 6,6).

A profecia de Oseias não tolera os pecados que estão desfigurando o povo. Quando ouvimos a palavra “pecado” quase automaticamente somos levados para o episódio bíblico da queda de Adão e Eva. Assim, fazemos uma separação entre pecado e história das sociedades. Pecado não é ofensa a Deus, sem ter nenhuma relação com as relações humanas e históricas. Oseias ajuda-nos a perceber o “pecado” como vindo das entranhas das relações históricas e, muitas vezes, apoiado por funcionários das instituições religiosas.

Em Oseias transparece um Deus que é só Misericórdia. Oseias é radicalmente contra não somente os sacrifícios, mas contra todo e qualquer sacrificialismo. O desfecho da profecia de Oseias reconhece Deus como sendo só misericórdia. “Misericórdia quero; sacrifício, não.” (Os 6,6). Oseias ouviu os sussurros de Javé que dizia: “Eu vou, eu mesmo, persuadir o povo, conduzi-lo ao deserto e convencê-lo.” (Os 2,16).

Hoje, de forma disfarçada, a indústria do sacrificialismo e da idolatria, denunciada com ira profética por Oseias, está funcionando a todo vapor em realidades tais como o agronegócio, a mineração depredadora, o neoliberalismo político e o fundamentalismo religioso. Enfim, na idolatria do mercado e do capital.