Oi, Márcio. A sua pergunta é muito importante. Abrange um tema que me chama muito a atenção. Já o abordamos muitas vezes aqui, mais creio que devemos tratá-lo novamente cada vez que alguém manifesta uma curiosidade. É por isso que não me preocupo em repetir algumas idéias já ditas.

Primeiro de tudo é importante notar que você percebeu uma provável incoerência no texto bíblico. Uma incoerência, vamos sublinhar, para nós leitores modernos, mas nenhuma para a dinâmica bíblica. Nada de errado com a Bíblia, mas é provável que há algum problema conosco, leitores modernos.

 

O texto bíblico

Como você notou, na Bíblia temos duas histórias da criação. Trata-se de duas fontes literárias diversas, ou seja, sem entrar em detalhes, de dois autores. O primeiro, que escreveu Gênesis 1,1 a 2,4, conta a criação num esquema de 7 dias; normalmente é chamado Sacerdotal. O segundo autor, chamado Jahvista, deixou o seu recado no segundo capítulo da Bíblia, mais exatamente em Gênesis 2,4b-25  (na verdade a sessão completa é de 2,4b até 3,24). Nessa segunda história, aquilo que marca a narração é a centralidade do homem, a sua criação do barro, e a criação da mulher como sua companheira, criada da costela do homem. Os animais são criados apenas como uma tentativa de encontrar companheiros para o homem.

Embora a Bíblia conte a criação realizada em duas formas diversas, não houveram duas criações. Também não é verdade que a Bíblia está contando mentiras. Todavia a questão não é simples, pois envolve seja a objetividade do texto que a subjetividade do leitor.

 

A questão do leitor hodierno

Não existe leitura sem ideologia. Cada vez que tomo um livro, seja ele sagrado ou profano, ponho entre o texto e a minha pessoa, milhares de condicionamentos que interferem, seja em modo positivo que negativo, na interpretação. A influência ideológica exercida sobre a leitura de um livro profano não tem consequências importantes para a nossa vida, excetuando a reflexão pessoal. Todavia aquela exercida sobre a leitura do livro sagrado sim, pois, nesse caso a leitura da Bíblia, traz consequências para a minha vida de fé, que não é vivida isoladamente, mas em comunidade. Se penso que um texto bíblico tenha certa mensagem, procuro trasmitir essa mensagem àqueles que fazem comunidade comigo e não a retenho apenas para a minha vida ‘privada’. É por isso que é importante ler bem a Bíblia, procurar entendê-la. É fundamental a auxílio exegético para termos certeza que estamos caminhando bem. Afinal, também na fé precisamos ser acompanhados.

 

A tradição e a ciência

A Bíblia não é lida somente por nós agora, no século XXI, mas somos influenciados por séculos de interpretações. Durante muito tempo ninguém questionou como foi realizada a criação por Deus. Todos retinham que tudo havia acontecido tal como descrito no livro do Gênesis. Crescemos escutando dizer que o homem foi criado do barro. Todavia houve uma revolução intelectual que influenciou também a leitura exegética. Podemos simplificar e dizer que Charles Darwin, inglês, foi um dos protagonistas desta revolução, pondo bases para questionar como tudo aconteceu no momento da criação. Viajando pelo mundo num navio, entre os anos 1831 e 1835, Darwin elaborou a teoria da evolução. Nas ilhas Galapagos ele observou que o mesmo passarinho tinha um bico diferente, dependendo do lugar onde vivia. Em uma ilha esse pássaro tinha o bico curto e forte, pois o seu principal alimento era a nós, que ele tinha que quebrar com o bico para comê-la. Em outra ilha o mesmo passarinho tinha o bico fino e comprido, pois precisa alimentar-se de alimentos que encontrava nas rachaduras das pedras. A teoria de Darwin foi publicada em um livro de 230 no ano 1858.

As idéias de Darwin inauguraram o caminho para os estudos específicos sobre a origem do homem. Hoje os cientistas estão estudando os geomas do Homo Sapiens e do Homem de Neandertharl e pretendem confrontá-los entre si para estabelecer quais as novidades genéticas que fizeram com que o Homo Sapiens se tornasse o Homem Moderno. Os estudos dizem que a evolução humana começou há 6 milhões de anos e Homem Moderno apareceu por volta de 150 mil anos atrás.

A teoria da evolução é bem fundamentada e aceita com facilidade no mundo científico. E podemos dizer que também o Magistério da Igreja Católica aceita essa teoria. O papa anterior, João Paulo II, por exemplo dizia, em 1985, em um simpósio sobre “Fé cristã e teoria da evolução” que a teoria da evolução e a criação não se excluem e uma não cria obstáculo a outra. Ele puntualiza: “A evolução supõe a criação, ou melhor, a criação, à luz da evolução, é um fato que se prolunga no tempo, como uma creatio contínua.” E também o Catequismo da Igbreja Católica diz que “a criação não saiu pronta das mãos do criador” (n. 302). Deus não criou um mundo não perfeito, mas “em caminho para a sua perfeição última. Esse futuro do plano de Deus leva ao surgimento de alguns seres e ao desaparecimento de outros” (n. 310).

Portanto o processo evolutivo é aceitado. Invés os fatores que levam à evolução e também as modalidades evolutivas ainda não foram definidos de forma unânime e as pesquisas científicas estão abertas. Exatamente aqui cabem duas perguntas: existe a possibilidade de um projeto divino para a criação? O homem representa necessariamente um desenvolvimento natural da natureza? Teologicamente falando é importante afirmar a relação de dependência radical do mundo de Deus, que criou as coisas do nada, mas não nos disse como. Por isso nasce o debate a respeito do projeto divino sobre a criação. Uma das tentativas de explicar a criação aceitando a evolução é o Inteligent Design, que podemos traduzir como “projeto inteligente”. Essa teoria aceita a evolução, porém defende que o processo evolutivo não é casual, invés pilotado por um intervento “inteligente” que tem como objetivo conduzir a evolução dentro de um plano que tem o seu vértice no homem. Essa leitura pode ser apoiada na bíblia, visto que no Gênesis se diz que Deus põe no homem a imagem divina, mas não no animal. O problema do “projeto inteligente” é que pensa de ser uma teoria científica e nisso erra. Está, na verdade, em um plano diverso, teológico. Além do mais essa pseudo ciência não consegue explicar por que, em certos casos, tais como os desastres naturais e os “erros da natureza”, esse “projeto inteligente” não é eficaz.

Teologicamente poderíamos pensar que Deus colocou na criação o princípio evolutivo, ou seja, a possibilidade de cada matéria orgânica de evoluir para formas sempre mais complexas e organizadas de vida. Teilhard de Chardin, a propósito, diz que Deus não faz as coisas, mas faz com que elas sejam feitas. Deus é a causa primeira de cada coisa que opera por meio de outras causas. Obviamente o homem é um aspecto importante do intervento de Deus. Com o homem a evolução faz um salto ontológico. Quando e onde Deus quis surgiu a inteligência no homem. Ele acolheu o espírito conforme a vontade de Deus. De fato a natureza não pode produzir o espírito por conta própria, mas pode receber.

É uma teoria que não entra na esfera da ciência empírica e por isso não pode ser nunca provada por ela, mas também não pode ser negada.

 

Considerações sobre o texto bíblico

 

Num artigo publicado no nosso site, há algum tempo (A cosmogonia no Antigo Oriente Próximo), Reuberson fez uma boa introdução à relação entre os textos bíblicos da criação e os mitos dos povos vizinhos a Israel. Influenciados pelo ambiente em que viviam, os autores sagrados tentaram dar uma resposta à questão que inquieta todo mundo: de onde viemos. Mas não é verdade que aquilo que está escrito na Bíblia é apenas mito. A leitura do autor bíblico é feita com fé. Deus é o criador de todas as coisas. Esta é a verdade que transmite, sem exitação, a Bíblia. A linguagem que usa para dizer esta verdade é delimitada por um contexto específico, que precisa ser bem entendido, de forma científica e não literal.

 

Conclusão

Não se assuste, mas todo biblista sabe que Adão e Eva não foram criados de um momento ao outro, num piscar de olhos, por Deus. Ou seja, o relato bíblico não é história, no sentido que estamos acostumados a entender: não houve um dia histórico em que Deus ‘acordou’ e decidiu: “hoje vou começar a criação”. Contudo sublinho que não estou dizendo que a Bíblia conta uma mentira: a criação é obra de Deus. Essa é a grande verdade bíblica e isto precisamos sublinhar. Todavia, o como isso aconteceu nós não sabemos exatamente e nem o autor do Gênesis sabia. A Bíblia ensina verdades que ultrapassam o evento singular. O modo da Bíblia de contar a criação é uma leitura feita por alguém (ou um grupo) da origem do mundo; uma interpretação da origem do mundo. Nesta leitura o autor foi, sem dúvidas, além de inspirado por Deus, influenciado por elementos mitológicos, mas inovou, colocando Deus como criador e o homem ao centro desta obra.

 

Cabe à ciência decifrar a origem do mundo. Fé e ciência não são dois polos contrapostos, mas se integram e se complementam. Talvez a resposta esteje na Teoria da Evolução. Às vezes porém acontece que tal teoria se torna uma ideologia, negando aspectos igualmente importante da criação. De fato quando os cientistas dizem que a criação de tudo depende do caso e da necessidade não estão sendo cientistas, mas acegados por uma ideologia. Do mesmo modo erram os cristãos quando lêem o texto do Gênesis como a verdade absoluta sobre a criação. O texto bíblico sobre a criação não pretende ser um texto de ciência natural ou de física, que pretende transmitir ao leitor dados informativos de ordem científica. De fato a Bíblia tem por objetivo transmitir um outro tipo de informação, ou seja, que a vida, nas suas diferentes formas e expressões, não é um produto do acaso, mas de uma vontade trascendente.