Essa passagem, aos nossos olhos, traz duas questões que juntas parecem colocar uma distância entre Jesus e a sua mãe. Todavia essa impressão não corresponde com a realidade e muito importante ler bem o texto de João.

A primeira surpresa, aos nossos, é a palavra que Jesus usa para chamar a sua mãe: “mulher”. Para nós soa estranho, que um filho se dirija assim a sua mãe. E muitos podem até pensar que se trate de uma maneira não tanto cortês ou até mesmo uma falta de afeto. Mas, analisando outras passagens podemos comprovar que não há nada disso por trás do uso desse termo. De fato, olhando outras citações nos evangelhos vemos que era comum Jesus usar essa expressão até mesmo quando era evidente a sua gentileza (veja Mateus 15,28; Lucas 13,12; João 4,21; 8,10; 20,13). Além dos evangelhos, esse modo de se exprimir se encontra também em outra literatura grega, fora da Bíblia. De qualquer forma, o que é efetivamente estranho é o fato que se usa “mulher” somente, sem um título que o acompanhe, usado pelo filho. Isso não é comum. Mesmo assim, certamente não é uma tentativa de rejeitar ou desvalorizar a relação mãe-filho, pois nos versículos próximos, de 1 a 12, Maria é chamada “mãe de Jesus” 4 vezes, entre as quais duas vezes depois de se usar a expressão “mulher”. Tudo isso leva os estudiosos a hipnotizar a existência de uma importância simbólica no título “mulher”.

A segunda surpresa se encontra na frase que você menciona na pergunta: “que tenho eu contigo?” Aqui precisamos entrar um pouco no campo técnico. Literalmente, o texto original diz “O que para mim e para ti?”. Classicamente essa frase é considerada um “semitismo”, ou seja, é uma frase dita em grego, mas por alguém que é acostumado a falar uma língua semítica, nesse caso o aramaico. Para entendê-lo, precisamos ver como tal frase é usada no Antigo Testamento. Há duas situações em que ela aparece. A primeira acontece quando existe uma situação em que alguém injustamente acusa o outro. Nesse caso, a pessoa que é injustamente acusada pode dizer: “o que para mim e o que para ti?”, ou seja, “o que fiz para ti para que tu faças isso comigo?” (veja Juízes 11,12; 2Crônicas 35,21; 1Reis 17,18). O outro caso em que tal frase pode ser usada é quando alguém e convidado a participar de alguma situação para a qual ele percebe que não tem a ver com ele. Essa pessoa, então, pode dizer a quem o convida: “o que para mim e o que para ti”, no sentido de “isso é coisa tua; porque me está colocando no meio?” (veja 2Reis 3,13; Oseias 14,8).

Dentro dessa leitura, a frase “que tenho eu contigo” significa algum rejeição em relação a uma intromissão julgada inoportuna ou uma divergência entre a visão de duas pessoas envolvidas: a primeira implica certa hostilidade, enquanto a segunda simplesmente um desacordo. Há outros exegetas que sugerem uma Terceira interpretação, que considera a passagem de 2Samuel 16,10, onde se lê “o que para mim e para ti”, e onde o significado é “isso não é coisa nossa”. Diante disso, alguns sugerem que Jesus está dizendo para Maria que a questão do vinho não era nem algo para ele nem para a sua mãe.

O segredo dessa passagem, do meu ponto de vista, está na frase “ainda não é chegada a minha hora”. Esse tema da “hora”, muito particular de João, mostra que Jesus simplesmente está negando o seu envolvimento, esperando o momento para realizar inteiramente a sua obra da salvação, que é na sua Paixão, Morte e Ressurreição, quando ele realiza radicalmente a sua missão.