Essa passagem se encontra em 2Reis 2 e marca o início do “ciclo de Eliseu”. Ela engloba todos os dois profetas, mas acredito que podemos sublinhar a leitura desse texto a partir da perspectiva de Eliseu, que deve seguir a estrada do seu mestre na vocação profética, depois que um carro de fogo arrebata Elias aos céus. Dentro desse quadro, procuramos ver que sentido pode ter a tentativa de Elias de seguir sozinho, sem Eliseu.

Na passagem, por três vezes Elias diz ao discípulo que recebeu uma ordem de Deus para ir sozinho: para Betel, para Jericó e para o Jordão. Todas as três vezes Elias diz a Eliseu:

Fica aqui, pois Iahweh me enviou só...

A essa ordem do mestre, Eliseu, nas três vezes responde:

Tão certo como Iahweh vive e tu vives, não te deixarei

Essa conversa dos dois profetas era sempre observada por um grupo chamado de “filhos de profetas”, que advertiam a Eliseu que o seu mestre estava para ser arrebatado.

No final Elias é arrebatado e Eliseu toma o manto do mestre, que caíra enquanto era levado pelo carro de foco, sob a vista de Eliseu. E tudo se conclui com a afirmação dos “irmãos profetas”:

O espírito de Elias repousa sobre Eliseu.

Como interpretar essa relação, de certa maneira tensa, entre Elias e Eliseu quando os dois se separam definitivamente? Parece evidente que a tensão é causada pela dúvida que se entrevê nas palavras dos “profetas”, que acompanham os dois protagonistas para ver o que vai acontecer quando Elias não mais estiver presente. O final é feliz, pois o espírito de Elias passa a Eliseu. Portanto, retornando à pergunta, o fato de Eliseu ter “desobedecido” ao mestre, que queria ir sozinho, foi uma coisa positiva, que contribuiu ao bom desfecho da tensão. A insistência de Eliseu de acompanhar o mestre faz com que ele receba o espírito de Elias.

Poderíamos tirar várias lições desse episódio. Há por exemplo a importância da localização geográfica da cena: Betel, Jericó, Jordão... Os dois profetas percorrem o caminho inverso dos hebreus, que entraram na Terra Prometida atravessando o Jordão, conquistando Jericó e construindo a casa do Senhor em Betel. Mas muito mais importante é a relação entre os dois protagonistas. Elias precisa descobrir que Eliseu é mais do que um servo. De fato, quanto teve que fugir para o deserto, deixou seu servo em Bersabeia e foi sozinho para o deserto (1Reis 19). Agora não está sozinho; tem consigo um discípulo. E Eliseu não o deixa só, quando seu mestre vai em direção à “morte”, retornando para a outra margem do Jordão, no deserto, onde o povo dos hebreus começou a ser "povo de Deus". Um servo simplesmente obedece, não discute, não protesta, mas um discípulo pode fazê-lo: “Tão certo como Iahweh vive e tu vives, não te deixarei”. Eliseu é a companhia final do profeta, que o segue lá aonde o servo não vai.

Eliseu é chamado a ser o herdeiro de Elias. Isso fica muito evidente no fim do relato, quando recebe o manto do mestre. Mas podemos ler essa dinâmica também graças à presença dos misteriosos “filhos dos profetas”. Provavelmente era uma comunidade de profetas, que vivia nas periferias das cidades. Quem sabe também Eliseu vivia em uma dessas comunidades. Mas sabe o que lhe atende, a herança de Elias e uma missão carismática, que não se limite ao profetismo clássico representado pela comunidade a qual podia pertencer. Enquanto os filhos dos profetas ficavam à distância, observando, Eliseu acompanhava Elias, de perto, continuando o caminho do mestre. Mas isso só será possível se Eliseu conseguirá acompanhar o mestre até o fim. De fato, Elias diz ao discípulo que terá a sua ‘herança’ “se me vires ao ser arrebatado da tua presença, isso te será concedido; caso contrário, isso não te será dado”.

A insistência de Eliseu, o seu testemunho e principalmente o seu “ver” são fundamentais para que ele receba a herança, o manto, do profeta. O ver é entendido como dimensão profunda de participação à experiência única da passagem de Deus e confirma a participação de quem assiste na relação que existe entre Deus e Elias.

Com poucas palavras, como conclusão, poderia dizer que a tentativa de Elias de “se livrar” de Eliseu é uma prova que visa verificar que tipo de discípulo ele é, se está preparado para receber sua herança e se tornar um mensageiro de Deus.

Essas são algumas reflexões que me sugerem a leitura dessa passagem, sem elaborar um verdadeiro tratado exegético. Há sem dúvidas muitos outros aspectos que poderiam ser abordados, como por exemplo a relação Elias /  Moisés, evidente tanto nessa "volta" ao deserto mencionada nesse texto quanto na ida de Elias para o Horeb, citada em 1Reis 19. Com certeza, outros olhos colherão ulteriores perspectivas que se somarão à mensagem divina presente no texto e a enriquecerão.