Qualquer leitor nota as incoerências históricas existentes nos primeiros capítulos da Bíblia. Repetimos continuamente aqui que essas incoerências existem só por que esses textos são mal lidos. A maioria dos leitores, de maneira errada, os interpreta como história no sentido de fatos que aconteceram. Não são história, mas contos que transmitem a verdade historiografica sobre o que aconteceu. Como digo sempre, é absurdo continuar pensando que a Bíblia conta detalhes cronológicos sobre o início do mundo. Para se dar conta que isso não é possível, basta considerar a existência de duas criações do ser humano nos dois primeiros capítulos da Bíblia, um onde ele é criado no sexto dia e outro em que é criado do barro. É claro que o ser humano foi criado uma só vez e se na própria Bíblia existe duas narrações diferentes resulta evidente que a intenção do autor não aquela de contar uma historiografia do início da humanidade.

E o mesmo conceito vale também para os primeiros personagens bíblicos, a família de Adão e Eva, com Caim e Abel e os outros irmãos. Obviamente eles não foram os primeiros habitantes da terra, em sentido cronológico, mas são símbolos do início da humanidade e através deles o autor sagrado conta a verdade sobre a humanidade: como foi criada por Deus, que preparou para ela um mundo ideal, mas que não foi capaz de acolher de maneira plena, tendo o ódio entre as pessoas já sido presente desde o início da humanidade.

Sei que não é fácil aceitar essa visão, mas abra seu coração e reflita, além de ler comentários sérios, de exegetas que dedicam toda a vida a explicar a dinâmica da Palavra de Deus e julgue como muito mais autoritário tais reflexões do que outras feitas por pessoas sem preparação, muitas vezes conduzidas somente pelo espírito fundamentalista.

 

Os primeiros capítulos da Bíblia são fundamentais

Toda essa perspectiva não significa que é preciso abandonar os primeiros capítulos bíblicos. Eles são fundamentais! Estão à base do plano divino para a humanidade. Entedê-los bem é condição fundamental para compreender a história da salvação. A Bíblia começa dizendo "na origem" (Gênesis 1,1) e isso seria como dizer "no fundo", "na raiz". Portanto, mesmo se você descobre que eles não são "históricos", tenha certeza que são verdadeiros, pois transmitem a revelação de Deus.

Cada texto de Gênesis 1 - 11 é cheio de significado e transmite uma mensagem muito importante para nós hoje. Assim acontece com a história emblemática da relação entre os irmãos, que termina num fratricídio, no assassinado de Abel.

O ensinamento da história de Caim e Abel pode ser vista de maneira dupla (veja também Esaú e Jacó). Acredito que o aspecto fundamental é que Gênesis 4 mostra a lógica divina, que não coincide necessariamente com aquela humana: Deus acolhe Abel, o escolhe como preferido! O outro aspecto deriva desta constatação: a relação entre os irmãos precisa respeitar essa lógica divina e não pensar que o justo é aquilo que se crê, normalmente centrado no próprio interesse. Caim, símbolo do "irmão", não entende a lógica divina e a considera como uma exclusão e a solução que encontra é eliminar seu "concorrente".

Quem é pai e mãe pode entender muito bem essa dinâmica: dentro de uma família, existem preferências, mas elas não significam necessariamente exclusão. Cada irmão é diferente e dessa diferença terá que brotar uma união e não o assassinato. A diferença é muito destacada nesse texto dos dois irmãos: um é agricultor e outro é pastor. Isso basta para que se saiba que o pecado consiste em não aceitar a diversidade. Os pais gostariam que os filhos fossem iguais, mas todos sabem que não o são. Muitas vezes se busca a homologação e se retém a diferença como fonte de problema. Mas verdadeiros pais sabem acolher a diferença e só pais onipotentes buscam cancelar as diferenças entre os filhos.

Portanto, concluindo esse parágrafo, Gênesis 4 ensina como conviver com a diferença. O autor sabe que existe em algumas pessoas uma vontade de matar o outro e se pergunta como isso seja possível. Existe um ódio fraterno que quando cultivado leva ao assassinato. E a fonte desse ódio se encontra na diferença, em não saber acolhê-la e conviver com ela.

 

O sinal de Caim

É um tema bastante misterioso e, por isso, várias hipóteses, muitas delas absurdas, foram feitas. Veja, por exemplo, o elenco das possíveis explicações proposto por  Champlin ("Antigo Testamento Interpretado"):

  • Caim teria se tornado negro e foi o pai das pessoas de pele escura;
  • Ele teria recebido uma espécie de tatuagem;
  • O nome de Deus, Yahweh, teria sido estampado na testa dele;
  • O nome “Caim, o fratricida”, teria sido escrito em sua testa;
  • Deus teria tornado Caim invencível – não podia ser queimado, afogado, nem ferido à espada;
  • Uma luz, como o círculo do Sol, o acompanhava por onde quer que ele fosse.

O que impressiona a nós, leitores modernos, é a decisão de Deus de proteger Caim, colocando sobre ele um sinal. Em poucas palavras, Deus diz: que ninguém toque a Caim. O "sinal" não é um estigma que denuncia o seu crime, mas uma marca que o protege. Isso vai contra a nossa forma de justiça, pois afinal trata-se de um assassino. Como pode Deus protegê-lo?

É importante notar como Deus condena o fratricídio ("és maldito e expulso do solo fértil"). Mas, ao mesmo tempo - e creio que essa é a chave para entender o que significa "sinal" - Deus preserva a sua natureza humana, que é um valor em si mesma, que não pode ser tocada por ninguém: ninguém pode destruir, desvalorizar ou acabar com o valor do ser humano. Essa dignidade é respeitada por Deus sempre a tal ponto que Cristo afirmará que veio para os pecadores.

No ser humano existe sempre um germe sagrado, onde se esconde a sua dignidade, a sua "imagem de Deus", que é intocável e não pode ser suprimida nem mesmo por Deus.

Em base a esta perspectiva deveríamos modelar nosso comportamento e isso mostra como deveríamos venerar o outro, mesmo se fosse o nosso pior inimigo.